Causos de Maricá (6)
Naquela manhã chuvosa e cinzenta, assumi o papel de eremita errante e parti ao encontro da natureza, caminhando, sem destino, por aquela praia sem fim.
Era como se estivesse em uma branca estrada, completamente erma, que ia até o horizonte, banhada pelo imenso azul do mar e, em alguns trechos, estreitada pelo avanço da verde floresta tropical.
Aos primeiros raios de sol, formou-se, ainda, como moldura da belíssima paisagem, um gigantesco arco-íris, certamente em homenagem a natureza.e seu Criador.Extasiado por tudo isso, enquanto caminhava, comecei, pouco a pouco, a distanciar-me, cada vez mais, do escuro lado da vida, passando a apreciar e usufruir os mínimos detalhes daquela estrada, ora arenosa, mas por vezes, cheia de pequenas pedras
Na praia, os grãos de areia, nas mais diversas cores e formatos, além das mais variadas estrelas-do-mar, águas vivas com seus tentáculos, incontáveis crustáceos, os chamados escudos de São Jorge, e outros mais, destacavam-se como maravilhas da criação divina.
Contudo, vez ou outra, aqui e ali, a mão do homem apresentava sua cultura, com toda a qualidade de lixo trazido pelo mar: pedaços de madeira, restos de cortiça, coletes salva-vidas, garrafas, óleos e piches, restos de roupas, e ainda mais, por certo descartados por navios que, de tempos em tempos, passavam no horizonte.
Lembro-me, em especial, até hoje, de um grosso livro, todo encharcado da água da chuva, capa escura de couro, com centenas de páginas escritas à mão, em idioma desconhecido, que encontrei semi-enterrado na areia, junto com milhares de conchas, trazidas pela maré cheia.
Acreditei ser um diário de algum tripulante contando infindáveis histórias de sua vida e viagens feitas pelo mundo e que, ao final, por razões desconhecidas, abriu mão delas, escolhendo o mar como sepultura .
Após folheá-lo e examinar alguns de seus escritos e, em especial os misteriosos desenhos e inscrições, deixei o livro na areia, e, sem olhar para trás, abandonei aquelas histórias.
Eram vidas que não me pertenciam.
Eram vidas misteriosas. MISTÉRIOS DO ALÉM-MAR.
Prossegui caminhando, já agora, na areia mais firme, próximo a espuma formada pelas ondas, descalço, aliviando o calor abrasador.do sol a pino.
Bem adiante, fatigado pelo esforço, cheguei a uma região de falésias, bem junto às águas, cujas escarpas sombreavam a estreita faixa da praia, e, ali, sentado, à entrada de uma de suas inúmeras grutas, à sombra, fiquei a apreciar o imenso mar.
Impressionei-me com o grande tamanho dos cardumes que chegavam a escurecer as águas claras, bem junto à praia. Os peixes, em incrível quantidade, pulando acima das águas, refletiam, intensamente, os raios solares, parecendo enlouquecidos ou em fuga.
De repente, uma grande mancha negra aproximou-se, em velocidade, “rasgando” pelo meio um dos cardumes, ocasionado uma série exuberante de saraivadas contínuas de peixes, para tudo quanto é lado, durante longo tempo. .
Era um misterioso e assombroso peixe, talvez uma baleia gigante, um verdadeiro monstro, sei lá, que, próximo à arrebentação, fazia suas evoluções, saltos e mergulhos, em busca do alimento, imprescindível a sua existência. O formato era arredondado, em cor escura e com grandes barbatanas laterais. Apresentava o ventre com manchas brancas e estrias como se fossem sulcos, além de inúmeras rugosidades no dorso e nas laterais, feito parasitas ou cicatrizes de antigos ferimentos.
Como chegou, também partiu, repentinamente, mergulhando e desaparecendo por caminhos e para destinos desconhecidos.
Era vida na luta pela sobrevivência.
Era vida que não me pertencia.. MISTÉRIOS DO ALÉM-MAR.
No início da tarde, com o sol descambando e já refeito do cansaço, sentindo-me mais disposto, reiniciei minha caminhada.
Meu objetivo era, antes de anoitecer, alcançar as antigas ruínas de um farol, para, aproveitando a maré baixa, poder ver o que restava de antigo naufrágio ocorrido no século passado, razão pela qual, optei em apressar minhas passadas.
Estava no verão, o que me permitiu, chegar, em tempo hábil e com bastante claridade, ao local do sinistro.
Do alto das ruínas, tive uma boa visão e, logo avistei, após a arrebentação e quase à flor d’água, o corpo do gigantesco navio de transporte de bandeira estrangeira que, em noite de intensa tempestade, e também pelo mau funcionamento do farol, havia perdido a direção e ali encalhado, em um banco de areia.
Segundo os nativos mais idosos, as tentativas para se evitar o definitivo naufrágio foram inúmeras, todas sem sucesso, chegando-se até a decisão do descarte da carga transportada para diminuir o peso e aproveitar a maré cheia, o que poderia permitir o salvamento do navio.
Montou-se, então, uma espécie de “tirolesa” do navio até a praia, e, pouco a pouco, a preciosa carga foi sendo retirada e acomodada na areia. Trabalho intenso e demorado que só foi possível graças à ajuda dos nativos daquela inóspita região.
Contudo, apesar dos esforços, gradativamente, o navio foi afundando na areia, “cavando” sua própria sepultura, e lá ficou, até hoje.
Em seguida o sol se pôs, a noite caiu e procurei abrigo para dormir, em um dos pobres casebres de pau a pique, ainda existente por aquelas bandas.
Bem recebido e agradecido ao velho caboclo e sua família, participei, convidado que fui, de um rancho noturno dos mais simples, em mesa e bancos toscos de madeira.
O serviço, confirmando o que já me haviam contado sobre a retribuição do apoio prestado pelos nativos durante o naufrágio, foi exemplar.
Toalha e guardanapos de linho, talheres de prata, copos de cristal, e
outras relíquias, comuns nos requintados centros europeus e em uso em ambiente tão simples.
Era a vida de uma pobre família.
Era viida que não me pertencia. MISTÉRIOS DO ALÉM-MAR.