Assalto às goiabeiras
  O filme

Parte 1

 

Era um Sábado à tarde, de um ano qualquer de nossa infância, nas ruas semi-desertas e poeirentas de Jaguari-RS, nosso torrão natal,  quando brincávamos de  “manzuar lá” -  como dizíamos em nosso dialeto infanto-juvenil sem ao menos perceber aquele “manzuar” era  influência dos filmes de farwest que assistíamos à época, nas matinés domingueiras do Cine Teatro Ideal. Pois era um derivativo da expressão “hands up”, que na tradução legendada aparecia na tela como “mãos ao ar”, que o “mocinho” berrava, apontando o revolver para o bandido antes de baleá-lo.

 Nossa turminha era constituída de oito, às vezes dez guris com a idade criativa entre onze e treze anos, moradores da Rua Grande e Rua de Baixo, à entrada da cidade, para quem vinha de Santiago.

Bastava alguém convidar: vamos brincar de “manzuar”, e pronto. A brincadeira consistia em dividir a turminha em dois bandos antagônicos: os da Rua Grande contra os da Rua de Baixo. Cada um se armava com uma pistola, que poderia ser uma forquilha de pitangueira, o cabo quebrado de um guarda-chuva velho, a própria mão com o dedo indicador em riste imitando um revóver, ou mesmo, aos mais criativos, uma pistola feita de madeira falquejada a facão. Então, divididas as turmas, cada participante saia a se esconder atrás de um muro, no tronco de cinamomo, ou atrás da porta da cozinha – mas para isso precisava contar com a cumplicidade da empregada para não ser denunciado ao inimigo.

 Ao grito de: “tá valendo!”, todo mundo devia sair dos esconderijos e procurar o bandido, negaceando com cuidado e atento para apontar e gritar: “manzuar lá! Quem gritasse primeiro “matava” o inimigo e o tirava da ação. E por fim contavam-se os “mortos”. E a turma que “matasse” mais bandidos era declarada vencedora.

É claro que não raro havia discussões: “Ah... não! Eu atirei primeiro. Tu já tava morto.” - alegava um. “Não mesmo! Eu gritei primeiro. Assim não vale! Não brinco mais” retrucava outro. Mas no fim a paz voltava a reinar entre as partes, pois sempre havia uma voz para contemporizar e reinventar uma nova molecagem para acalmar os ânimos.

 

Parte 2

Pois foi o que aconteceu naquela tarde, quando, após acalorada discussão, Gentil, filho do Sanclé, um negrinho vivo como o capeta, carapinha azulada, que era um parceirão nestas brincadeiras, teve uma idéia brilhante:

 - Vamos roubar goiabas da Dona Candoca?

- Será que dá? E se ela descobrir? Ah... não sei. – ponderou o gorducho Flavio.

- Pergunta pro Toco. Ele deve saber, pois é neto dela.

Então o Toco se aproxima e dá o palpite.

- Não sei. Se vocês querem ir eu não atrapalho. Mas fico de fora. Pois se meu pai souber que eu andava junto,  a roubar goiabas  de Vó Candoca,  aí  eu me lasco,

Então resolvi me meter na conversa, pois além de achar que  a idéia do Gentil era  boa, eu já estava com água na boca sentindo o sabor suculento das goiabas maduras de Dona Candoca.  Então ponderei.

- Olha, gente. Nesta hora ela deve estar entretida em casa. Não é hora de ela ir ao pomar. Eu acho que dá. E não é preciso entrar todo mundo. Uns ficam de fora aparando as goiabas.

- Então, quem é que entra? – perguntou Daniel, meu irmão.

- Eu vou. Eu vou – prontificou-se Gentil. Era sempre assim: Para uma capetagem ele era sempre o voluntário. Então fomos.

A herdade de Dona Candoca - viúva e carregada de filhos e filhas já todos adultos, casados,  mais de uma dezena de netos - era enorme para os padrões urbanos. Ficava à entrada da cidade – o primeiro casarão da rua – encravado num terreno de mais de dois hectares. O pomar, objeto de nossas gulas, era protegido por uma sólida cerca de arame farpado. E em todos seus quadrantes havia peras, maçãs, laranjas, bergamotas – uma delícia quando bem maduras – pêssegos, ameixas e enfim uma longa fileira de goiabeiras a margear o cercado

                                              Parte 3

Chegados ao local do “crime”, não sem antes termos descrito uma grande curva para disfarçar nosso itinerário e não denunciar nossas más intenções, Gentil, após visualizar o ambiente do casarão, que ficava na parte alta do terreno, combinou, já falando à meia voz:

- Eu entro, apanho e jogo pra vocês. Não façam bulha.

- E os cachorros?  - perguntei.

- Os cachorros devem estar presos na corrente – palpitou Joãozinho do Tio  Orlando.

Então passamos a assistir, nervosos e apreensivos, Gentil se esgueirar como um lagarto, com seu corpo esguio e ágil, varando a cerca, auxiliado por um companheiro para afastar um pouco mais os fios de arame farpado. E lá estava ele apanhando as mais maduras e jogando para nós, por cima da cerca.

Alguns minutos se passaram e a turma já estava ficando barriguda de encher as camisas de goiabas, quando de repente, o susto: Ouvimos a voz trêmula de anciã de Dona Candoca lá do alto, no quintal da casa, gritando:

- Agora vou aí, seus malandrinhos! Fora! Vou contar aos pais de vocês! Vou soltar os cachorros. Piloto, pega! Pega!!

- Foge Gentil! Vamo simbora! – gritei a plenos pulmões.  E a partir daí foi um salve-se quem puder. Na corrida desembestada, alguns caiam e levantavam. Outros ficavam para trás, pois estavam barrigudos com as camisas cheias de goiabas. Eu resolvi abrir a camisa para deixar as frutas caírem a fim de aliviar o peso, mas aí me lembrei de Gentil. Olhei para trás. Ele não aparecia. Os cachorros de Dona Candoca latiam raivosos. “Meu Deus. Será que ela soltou?” – pensei. “Cadê o Gentil?”

Aí atinei a gritar para dois companheiros que haviam ficado para trás e passavam por mim: -  Parem aí! O Gentil não saiu! O Gentil não saiu! – não me ouviram. Então, num misto de coragem e desespero, resolvi voltar. O esforço valeu a pena. Pois encontrei Gentil, com o corpo caído na relva, fora da cerca,  porém... na pressa de fugir, uma farpa de arame havia fisgado na parte superior de seu pé, deixando-o imobilizado com a perna erguida. E os cachorros latiam. Pareceu-me que já estavam chegando.  Não havia tempo a perder.  Aproximei-me e com algum esforço, consegui desentalar pé dele da farpa, que ao sair deixou um lanho sangrando em sua pele bronzeada.

 

Final

 

É claro que Dona Candoca jamais faria uma coisa destas: largar os cachorros. Pois se tratava da gurizada da vizinhança e outra por que ela era uma velhinha muito bondosa e entendia que aquilo não passava de traquinagem dos filhos do Vitório e do Orlando, e mais o negrinho do Sanclé, seus vizinhos de porta e amigos de longa data. Ela quis apenas dar um susto. E conseguiu. Pois a turma de “assaltantes”, com alguns figurantes ainda muito nervosos, foi se esconder num matinho que existia na própria chácara, para, reunidos em comitê, contabilizar os ganhos e perdas.  Entre “mortos e feridos”, só Gentil com um lanho no pé. Mas ele mesmo encontrou solução. Pediu que alguém colhesse folhas de “erva santa”, um arbusto facilmente encontrável em beiras de mato, mascou algumas, aplicou o emplastro no ferimento e ainda, com ares de quem saiu vitorioso, receitou:

- Não tem remédio melhor para estancar sangue e evitar que “arruíne”. Quem me ensinou isso foi meu pai Sanclé.

E quanto aos ganhos? Joãozinho foi mostrar a “barrigada” de goiabas que ainda guardava como troféu, mas ao abrir a camisa o que vimos foi uma verdadeira goiabada.  Na fuga ele havia caído três vezes. E entre o cair e levantar, as goiabas madurinhas ficaram completamente esbagaçadas. Desconsolado, Joãozinho olhava para a camisa que ficara vermelha com aquela pasta melada e só atinou a lamentar:

  - E agora?  O que é que vou dizer pra  mãe?

Contudo sobraram ainda muitas frutas aproveitáveis. E nisto, o Flávio, que era o mais forte da turma – tanto é que tinha o apelido de Gorducho – foi o campeão, pois trazia sob a camisa nada menos do que quarenta e sete apetitosas goiabas. Foi a salvação do filme que conta a história daquele Sábado, num ano qualquer de nossa gloriosa e criativa infância.

E a fim de descontrair o ambiente, enquanto todo mundo se lambuzava de escorrer suco de goiaba pelos cantos da boca, eu olhei para o Gentil, que estava sentado num toco, com o pé erguido em outro, se lambuzando numa fruta bem madura, e  brinquei:

   - Eta negrinho do couro duro, seu!

   Foi a gargalhada  mais sonora  e gostosa que se ouviu  dentro daquele matinho. Tanto que até os passarinhos que àquela hora já preparavam a pousada, se assustaram e fugiram.  

                                 The end

 
 

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Vinícius Lena
Enviado por Vinícius Lena em 04/11/2008
Reeditado em 18/11/2008
Código do texto: T1266222