À sombra dos pequizeiros
Conto
Vinicius Azzolin Lena
Naquela manhã ensolarada, Vanildo Probatti, o novo administrador da Fazenda Canto do Sabiá – um desmembramento da antiga Fazenda Chapadão – estacionou o trator à sombra de um pequizeiro, frondoso e florido, à beira da estrada de Cocos, próximo à Vereda Mandacarú e ficou a observar o belo espetáculo daquela árvore, típica da região, onde naquela hora zumbiam milhares de abelhinhas em sua faina diária à cata do precioso nectar. Como recém chegado à região, Vanildo, gaúcho de Jaguari, encantava-se cada vez que topava com um espetáculo como este, proporcionado pela natureza, nas veredas e brejões da Bahia. E ao apear notou que as flores caídas do pequizeiro desenhavam na relva um tapete colorido onde formigas, besourinhos e calangos viviam em paz e harmonia. Então ele se lembrou do costume que o povo do lugar tem de aproveitar a florada do pequi para abater veadinhos catingueiros.
Sucede que nesta época de pouco pasto devido à estiagem, estes animais tímidos costumam sair de seus refúgios no cerrado para vir até às veredas alimentarem-se com as flores de pequi caídas no chão. É a oportunidade para o tabaréu reforçar o cardápio da família. Para isso basta ele se empoleirar no tronco de uma destas árvores, munido de uma bate-bucha devidamente carregada com pólvora e chumbo e ficar à espreita. Aí não tem erro. O veado aparece, desconfiado, mas com fome, e põe-se a babujar distraído as florezinhas que recobrem a relva. E aí então, de repente, não mais que de repente, o estampido. E será mais veadinho a estrebuchar sobre o relvado, à sombra de um pequizeiro.
Dali onde estava, Vanildo espichou o olhar para a vereda, que ficava a uns quinhentos metros mais abaixo, admirando-se com a beleza do local. Um amplo lagamar onde a vegetação de um verde luxuriante, demarcado pelo buritizal onde bandos barulhentos de araras azuis ou vermelhas faziam suas algazarras comendo os frutos do buriti. Tudo isso lhe pareceu contrastar com o pano de fundo de tonalidade marrom esmaecido, formado pelas pequenas árvores retorcidas e desfolhadas do cerrado, não muito distante dali, e ficou a imaginar: “Que beleza de local para uma sede de fazenda.”
Porém ao tentar ir adiante, ele encontrou dificuldade, pois topou com uma cerca de arame farpado e moirões de aroeira, margeando a estrada, o que sinalizava que além de ter sido construída há pouco tempo, fora ali encravada para durar séculos. “Então é verdade? E eu que pensei que fosse apenas invencionice dos nativos” – refletiu, enquanto esforçava-se para varar aquele aramado e procurar a trilha que o levaria até à casa de Angelim Tapuio, o homem que, segundo informações, morava a quinze minutos de caminhada dali no rumo da vereda.
Quando saíra do Rio Grande do Sul, em meados de 1983, Vanildo não viera para a Bahia para comprar terras e plantar soja, como milhares de conterrâneos seus. Seu desejo, e necessidade, era encontrar campo de ação para desenvolver sua profissão de técnico agrícola e de prático em administração e gerenciamento de fazendas. Mesmo porque seu conhecimento sobre a cultura da soja e prática em capatazia de estância adquiridos lá no Sul, lhe serviram como cartas de referência. E com essas credenciais não foi difícil para ele encontrar trabalho, uma vez que era a tendência da época, quando a agricultura nacional passava por uma verdadeira revolução tecnológica, pois acabara de descobrir um novo filão, uma espécie de garimpo onde não se buscava ouro em pepitas, mas colhiam-se riquezas na forma de grãos de soja no solo rico, abundante e barato do cerrado brasileiro. E esta revolução já havia chegado, à Bahia do Oeste que vivia uma fase de grande expansão.
Atualmente ele estava gerenciando a abertura de uma fazenda na região do Rio Mimoso, de propriedade de um paranaense chamado Don Cebajos, seu patrão, recém chegado à nova zona agrícola da Bahia. Com carta branca e recursos à mão, como administrador ele já determinara a derrubada, com um correntão acionado por dois potentes tratores CBT, uma área de mais ou menos 800 hectares de cerrado. Por isso andava a procura de mão de obra para um serviço que nem as máquinas nem o fogo podiam fazer: a catação de raízes. Precisava de peões afeitos ao trabalho duro e ao sol causticante da região. E, segundo as referências que lhe chegaram através de outros peões já contratados, na vereda Mandacarú havia um antigo morador de nome Angelim Tapuio, que era um destes peões, prático e destemido, que ele tanto necessitava.
Após vencer o trecho da trilha que o levou ao destino, em meio às touceiras de mandacarus, pés de barbatimão e mangabeiras, aproximou-se de uma casa rústica e bateu palmas.
– Ô de casa!
Esperou um instante. Dois cãezinhos magros o receberam sem muito alarde. Apenas latiram num canto da casa, parecendo estar envergonhados devido suas magrezas.
Enquanto aguardava que alguém aparecesse, Vanildo ficou a observar moradia humilde. Uma casa rústica, antiga, um tanto larga, caiada, coberta de telha brejeira, com um alpendre na frente, onde se alinhavam quatro janelinhas e uma porta, circundada por um terreiro de chão batido, varrido, onde algumas galinhas pé-duro ciscavam displicentes. Notou também aqui e acolá, espalhados em montículos, os caroços de pequi que , após terem fornecido a polpa que é consumida cosida em água, haviam sido abertos ao meio para extração da amêndoa, fonte de proteínas no cardápio do tabaréu, além de fornecer um óleo aromático, que é considerado um santo remédio para os males das vias respiratórias. Surpreendeu-se com o tamanho da moradia. Pelo aspecto e estilo, julgou ser muito antiga.
Estranhou o silêncio. Será que não há ninguém em casa? Apenas os cachorros? – pensou.
– Ô... de casa! – chamou novamente.
Como resposta apenas um galo cacarejou, parecendo querer alertar o galinheiro todo da presença de um estranho no terreiro. Porém, não demorou muito e foram surgindo, uma após outra, nada menos do que cinco crianças, meninos e meninas mal vestidos, quase andrajosos, barrigudinhos e subnutridos.
– Papai está? - indagou.
- Tá não. - respondeu uma menina que parecia ser a mais velha da turminha, enquanto que os outros o olhavam, curiosos e admirados com a presença daquele estranho na casa.
- E mamãe?
- Mãe foi na roça rancá mandioca.
- Ela demora?
- Demora, não. Tá com tempo que ela foi - explicou a menininha que aparentava não ter mais de dez anos.
Vanildo resolveu permanecer e apenas procurou abrigar-se do sol à sombra de um pé de manga, enorme e florido, e ficou a esperar que aparecesse algum adulto para conversar.
Pelo tipo do arvoredo, com bananeiras de espécies variadas, mangueiras enormes e uma velha jaqueira, cujo tronco, tanto pelas dimensões como pelo aspecto nodoso da casca, Vanildo calculou que poderia muito bem ser centenária, concluiu que aquela moradia, certamente, também o era. Dali a alguns metros, rumo à vereda destacavam-se do verde escuro da vegetação, algumas manchas roxas das flores das sucupiras, brancas das ingazeiras e amarelo vivo dos paus d’arcos, numa profusão de cores e tonalidades de encantar. Nas grimpas de uma imburana de cheiro, uma rolinha chorosa, chamava pelo companheiro para um colóquio amoroso.
- É o milagre da natureza nos brejões da Bahia do Oeste – pensou Vanildo, respirando fundo enquanto aguardava.
Nisso a menina mais falante, erguendo o braçinho e apontando a um vulto que se aproximava em meio à vegetação que quase encobria a trilha, falou.
- Oh! Lá vem maínha. Olha lá.
Era a mãe, mulher trigueira, de feições indiáticas, pele bronzeada um tanto ressecada pelos raios solares, que vinha equilibrando na cabeça um pesado cesto. E, demonstrando surpresa quando viu aquele estranho em frente á casa junto às criança, em vez de continuar na mesma direção, cortou uma volta e dirigiu-se aos fundos da moradia. Mas não demorou muito e por fim ela apareceu à porta.
- Bom dia, dona – cumprimentou, o administrador da Canto do Sabiá.
- Dia – responde a mulher que ele calculou ter uns quarenta anos, vestida pobremente, cabelo negro escorrido e meio escondido por um chapéu de palha.
- Angelim está? – perguntou, a fim de iniciar a conversa.
- Marido? Tá não. Foi fazer espera lá nos pequis da chapada, doutro lado da vereda. Foi ver se caça um catingueiro. Mas inda que mal pregunte, o sinhô quem é? Mas não qué sentá? – disse apontando para um banquinho tripé que estava ao lado da porta, sob o alpendre.
Então ele resolveu se identificar e foi logo dizendo que seu nome era Vanildo, o novo administrador da Fazenda Canto do Sabiá, e que andava a procura de peões para um serviço de catação de raizes numa derrubada de mato que fizera para implantar uma lavoura de soja.
- Como me disseram que Angelim estava desempregado e me deram boas referências, vim até aqui para ver se ele quer trabalhar comigo. – disse o recém chegado
– Sei, não – fez a mulher – Isso é só co’ele mesmo. E inda agorinha, não faz muito qu’ele saiu e só volta na boca da noite. Foi fazer espera. Mas acho que ele quer, sim. Se assunte. A gente é pobre. Cuma é que havemo de não querer, seu moço? Vou falar pra ele que o senhor esteve aqui, quando ele voltar.
– Então a senhora faz o favor de dizer para ele procurar Vanildo, que sou eu, na sede da Fazenda Canto do Sabiá. Acho que ele sabe onde fica. Diga que é na fazenda do gaúcho, ali perto de Antonhozinho de Olinda.
– Tá bom. Cuma é que eu não havera de dizer?
Nesta altura, como o dia estava ainda inteiro, e também por curiosidade, Vanildo resolveu permanecer mais um pouco. Sentou-se no tripé e pediu um copo dágua. Enquanto a mulher saiu para providenciar, ele tentou puxar conversa com as crianças que, curiosas, ainda permaneciam agrupados no mesmo lugar.
– Como é teu nome? – perguntou dirigindo-se para a mais velha e mais falante.
– Rosamaria – respondeu a garotinha.
– E os outros?
E foi a própria Rosamaria que começou a nomear os irmãozinhos, um a um:
– Rosineia, Rosalvo, Rodinei e Rosicléia.
– E tua mãe como se chama?
– Rosaura.
Vanildo, por cortesia esforçou-se para não rir, ao tempo em que raciocinava: “Estamos frente a um verdadeiro roseiral”.
– Alguém ai já vai à escola?
– Ninguém, não senhor. A escola fica muito longe. Só lá no Povoado Grande. E nós não tem cavalo de ir – explicou Rosamaria.
“Cinco crianças sem escola? Como é que pode, É de doer?” - raciocinou, desolado.
Nisso voltava dona Rosaura com uma caneca de alumínio caprichosamente areada. Parecia haver sido polida recentemente. “Pelo menos isso”- pensou. “Ela é caprichosa.”
– Agora vão brincar pra lá e não incomodem – disse dona Rosaura aos meninos que estavam encostados um no outro, amontoado num canto, como querendo estar mais perto daquele brancão, estranho. – Simbora lá!
– Foi bom, seu menino, o senhor ter vindo até aqui. – começou dona Rosaura a falar logo que as crianças se afastaram. – A gente estamo sendo ameaçado. Não sabe o senhor?
– Ameaçados!? – admirou-se o administrador. – Ameaçados de que e por quem?
– De morte, seu menino! De morte, sim senhor!
Então Vanildo lembrou-se já ouvira comentários a respeito de uma disputa por terras, por isso a partir daí sua curiosidade aumentou e ele resolveu permanecer calado para ouvir história que dona Rosaura tinha para contar.
Ela começou dizendo que a terra onde eles moram, cujos documentos não existem mais, sempre pertenceu à família dos Tapuios, avós de Angelim, que foram os primeiro moradores da banda de cá do Rio Mimoso.
– De primeiro era muito grande. Mas depois foram chegando mais povo e se adonando de um pedaço. Depois vinheram mais outros e mais outro. E no fim sobrou para o pai de Angelim, o finado Abrancildes Tapuio, só a sede da antiga fazenda e o lagamar que vai da estrada do Coco até a vereda, onde nóis mora.
A firmeza da narrativa e a riqueza de detalhes, a Vanildo não restou dúvidas de que dona Rosaura era uma mulher esclarecida. Nesta altura ele perguntou:
– E os documentos, estão em mãos de quem?
– Seu menino, agora, não faz muito, apareceu um tal aí que tem os documentos antigos de toda a terra, dizendo que comprou as escrituras não sei onde. Tantos mil réis de terras e agora se diz dono de tudo. E já anda por ai vendendo fazendas pros gaúchos. Diz que pra plantar soja. Agora não sei.
– E esse tal dono das terras não será, por acaso, um tal de Justiniano da Alagoas, também conhecido como Berro Grosso da Ingazeira, que até deputado já foi? – perguntou Vanildo tentando expor seu pouco conhecimento sobre o assunto..
– Isso mesmo, seu menino. Ele anda dizendo que é preciso limpar a terra para vender mais fácil pros gaúchos. Quer que nós “desacupe” Já mandou recados pro Angelim. Diz que não tem conversa. Que as terras são dele, os documentos estão na mão dele e pronto. O senhor não viu o cercado que ele mandou botar aí na estrada? A gente ficou dentro do cercado. Se morre um aqui, não tem nem como sair com o defunto.
Penalizado e na tentativa de, pelo menos, encontrar um jeito de dar ânimo àquela pobre gente, Vanildo argumentou que eles deveriam procurar um advogado para tentar resolver tudo na justiça. Mas qual?
– Adianta, não, seu menino. Angelim já procurou dois lá na cidade. Mas eles dizem que não adianta nada, não. Eles querem muito dinheiro. Parece até que eles tem medo do tal Berro Grosso da Ingazeira. Eles disseram pro Angelim que o melhor era nós se mudar pra cidade. Ir simbora duma vez. Mas olha seu moço - como é mesmo seu nome? Vanilde? Olha seu Vanilde, nem eu nem Angelim vamo arredar o pé daqui. Nós nasce aqui e nós morre aqui.
Vanildo fez mais uma tentativa para explicar que às vezes é melhor ceder o dedo do que perder a mão, porém viu que estaria perdendo seu tempo. E como o sol já ia ganhando o ponto mais alto do dia, só lhe restou renovar o convite para Angelim ir trabalhar na fazenda, imaginando que lá, de qualquer forma, talvez se proporcionasse ocasião em que, através de argumentos, pudesse convencê-lo a buscar uma saída honrosa e que fosse menos prejudicial e menos traumática. Tanto para si como para sua família.
Após se despedir e nem bem dera os primeiros passos para retorno ao trator, ouviu-se lá longe, ecoando nas quebradas da vereda um estampido de arma de fogo. Então ele ainda pode ouvir dona Rosaura comemorar com às crianças que brincavam à sombra da velha jaqueira:
– Eita, Angelim porreta, seu menino! Ouviu, crianças? Papai acertou um catingueiro. Amanhã nós vai ter carne pra botar na panela.
Epílogo
Durante seu retorno à fazenda, com o sol já a pino, Vanildo Probatti não deixava de pensar na situação daquela pobre gente. Desde que aqui chegara, coisa de dois anos e meio, ouvia causos e mais causos sobre grilagem de terras e sobre este tal Berro Grosso da Ingazeira que, mesmo com esse nome, diziam que não ser flor que se cheirasse.
Sua fazenda de vinte e quatro mil hectares abrangia um chapadão que começava na Ponta Dágua, entre o rio Mimoso e o rio do Sapé e vinha confrontar com a estrada do Coco, onde Angelim e Rosaura e as cinco crianças, descendentes dos Tapuios, moram hoje até hoje, na antiga sede da fazenda de Abrancildes Tapuio.
Diziam que Berro Grosso a Ingazeiras conseguira a titularidade daquelas terras ao comprar uma partilha de herança expressa em milréis. Sucedia que antigamente a região dos Campos Gerais, constituía-se de terras praticamente devolutas. E quando havia documentos de grandes latifúndios, tais escrituras eram expressas em valores monetários e não em medidas agrárias Desta forma na hora de lavrar a escritura definitiva ficava muito fácil extrapolar divisas. Até mesmo porque em muitos casos, os limites eram demarcados com uma expressão que dizia: até onde justo for.
E, enquanto dirigia o trator CBT pela estrada poeirenta que cortava o cerrado no rumo de casa, e ainda preocupado pensando sobre situação daquela pobre gente, Vanildo foi surpreendido por um buzinaço. Era uma caminhonete C10 que o apertava pedindo passagem naquele caminho estreito. Quando esta passou, ele conseguiu ver, mesmo em meio à polvadeira, que na caçamba iam dois peões mal encarados que o fitaram com desdém e na tampa traseira estava escrito em letras douradas contra o fundo negro do carro: Agropecuária Justo. Ele logo identificou aquele “Justo” como sendo de Justiniano das Alagoas e não deixou de refletir: “É pensar no diabo e seus chifres aparecem.”
E, enquanto a C10 sumia no mundo deixando para trás um turbilhão de poeira cor de telha, numa demonstração de que o motorista estava apressado, Vanildo, seguia sem muita pressa em seu CBT para, dali alguns minutos chegar na Canto do Sabiá.
No outro dia ele se levantou um pouco mais cedo. Pois estava curioso em saber se Angelim havia recebido o recado e atendido ao chamado. E também para atender a peonada que costumava chegar antes do sol raiar. Estranhou o silêncio da turma. Fato que não era costumeiro, pois neste horário, a medida em que eles iam chegando começava aquela algaravia da peonada alegre e bem disposta a comentar em voz alta sobre os trabalhos do dia. E hoje ao contrário, quando abriu a porta da frente, encontrou-os agrupados, silenciosos, com o aspecto de tristeza e desolação. Vanildo teve a impressão de que só estavam esperando ele chegar para tratarem de um assunto grave. E antes que perguntasse qual seria o problema, um deles, o mais velho adiantou-se. E fitando-o com um olhar que expressava tristeza e dor, falou com voz embargada:
– Homem, senhor seu Vanildo. Aconteceu uma desgraça. Ontem, lá do outro lado da vereda, mataram Angelim Tapuio. Encontraram ele caído de borco, de baixo de um pé de pequi, com a bate-bucha dele carregada dum lado, e um furo, lá nele, bem aqui no meio das costas.