O FILHO DE JÚLIO VERNE
Tõe Véi nasceu na jurisdição de São Félix do Piauí, o pai tinha nome de gente famosa, mas era pobre e cego das duas vistas, ainda assim, capinava na lagoa, usando o tato como se fossem seus olhos, para diferenciar arroz de erva daninha. Criou a família sem depender de favores, nem ajuda do governo, ou se dependeu, não os obteve.
Na idade de dezenove anos, Tõe Véi resolvera procurar meios de ganhar a vida fora de casa, porque em São Félix as oportunidades de ganho eram escassas e acanhadas. Conseguira economizar o dinheiro da passagem de ônibus até a capital e um pouquinho a mais, o suficiente para alimentar-se durante dois ou três dias. A mala de viagem continha apenas um par de calças, três camisas, duas cuecas e um facão.
Antes de viajar ficara sabendo que na Praça Saraiva em Teresina, um senhor de apelido Ciço Paroara, contratava pessoas para trabalharem em fazendas no Maranhão e Goiás, oferecia bons salários, livres de hospedagem e despesas com o transporte até o destino.
Em Teresina encontrou-se facilmente com Ciço Paroara, um homem alto, musculoso e com cara de mau. Tõe Véi era alto e forte, porém uma alma inofensiva. Devido ao porte físico do candidato a emprego, Paroara o contratou e viajaram naquele mesmo dia, num pau-de-arara lotado de bóias-frias. Atravessaram o estado do Maranhão e no segundo dia, desembarcaram numa fazenda em Goiás. Todos foram revistados à procura de armas de fogo, ao descerem do caminhão. O facão de Tõe Véi fora classificado como ferramenta de trabalho, mesmo porque, deveriam usar foices, machados e facão para desmatarem uma área superior a mil alqueires.
Chegaram de noite no acampamento e jantaram uma gororoba feita com pedaços de abóbora doce e xerém de milho. Ocuparam uma estalagem que seria a casa de morada: um galpão sem paredes, coberto com palha de buriti e redes para dormirem. Na manhã do dia seguinte, antes das seis horas, um homem armado com um parabélum, sacudia um chocalho – era o despertador. Cada um recebeu um machado e após comerem batata-doce com café, foi-lhes mostrado o campo de trabalho, sempre sob a mira de uma arma. Não apenas de uma, cada equipe tinha um chefe armado para dar ordens e cobrar a execução dos serviços.
Durante três meses ninguém viu a cor do dinheiro do patrão, só serviços e ameaças: “Quem tentar fugir, morre”. Tõe Véi planejou sua fuga numa noite em que Ciço Paroara estivesse por conta do serviço de guarda. Pelo menos a este, conhecia melhor, tinham viajado juntos por dois dias seguidos e o livrara de ser picado por uma cobra, enquanto tomavam refeição à beira da estrada. Ciço parecia menos diabólico, quando se aproximava de Tõe Véi, talvez porque lhe devesse o favor de ter salvado sua vida. Tõe Véi contara sua história e seus sonhos de fazer um pé-de-meia e voltar para ajudar o pai, um velho cego com seis filhos para criar. Ciço também lhe confidenciara alguma coisa, dissera que largaria aquela vida de capanga de grileiro de terras e voltaria para o Ceará, logo que conseguisse dinheiro para começar um negócio.
Era uma noite escura. Não havia lua, nem estrelas. Tõe Véi percebeu que todos os bóias-frias dormiam, apenas Ciço Paroara , acordado, com a arma à tiracolo, postava-se no pátio como um militar vigiando um campo de concentração. Na escuridão, tateou sua mala e pôs o facão na cintura. O galpão não tinha paredes, mas ele preferiu sair pelo lado oposto à posição em que Ciço, como uma estátua viva, tomava uma xícara de café. Caminhando macio, entrou na mata e tomou a direção da estrada, atento a qualquer barulho de veículos ou latido de cães. Tudo silêncio, um silêncio de dar medo.
Tomara que Ciço não me tenha visto sair, porque se os capangas me alcançarem, não terei muita chance de sobreviver – pensava. Andou pela mata e só muito adiante pegou o fio da estrada.
Antes de surgirem os primeiros raios da barra, ocultava- se na mata, com o cuidado de não se afastar muito da estrada para não se perder. O dia todo ficava praticamente camuflado, imóvel e tirava a camisa para confundir-se com a ramagem. Caminhava a noite toda na estrada e de dia ocultava-se na mata, andando devagarzinho como quem caça um animal arisco. As primeiras horas viajou sem nada dormir, mas o cansaço abateu-lhe as forças e o fez procurar uma pequena clareira para descansar. Quando o dia amanhecesse, precisava procurar alguma fruta silvestre para comer, sem água e sem alimento não resistiria à jornada que tinha pela frente até atingir o Maranhão. Numa pequena clareira, havia um toco de uma grossa árvore e ao redor, não havia uma folhas, como se alguém houvesse passado por ali há poucos dias. Imaginou tratar-se de um foragido, que, como ele, teria encontrado uma cama a céu aberto para esticar o corpo. Tirou o facão da bainha e deitou-se ao lado dele.
A lua surgiu preguiçosamente e lançou frágeis raios de prata sobre aquele corpo cansado, estendido no chão. Um vulto, porém, postou-se à sua frente. Tõe Véi percebeu que era uma onça preta, talvez a dona da cama. Segurou no cabo do facão e pediu a Deus que não o deixasse ser devorado por aquela fera, no entanto, não retrocederia, nem demonstraria medo e nem faria o caminho de volta ao acampamento. Preferia ser devorado por uma onça, a viver como escravo de grileiro. O bicho esturrou, ele sentiu que fizera o serviço nas calças e disse para si mesmo. “Morre como homem, Tõe Véi. Levanta e enfrenta a fera”. Não precisou, bastou que se levantasse, ela deu outro esturro e pulou sobre ele. Tõe Véi tirou o corpo de lado e a onça chocou-se violentamente contra o toco. Ele se lembra de ter batido com o facão, ora acertando o toco, ora acertando alguma coisa peluda. Lutou até desmaiar e julgando-se vencido, não teve forças para entregar sua alma a Deus, simplesmente, caiu exausto.
Não sabia se morrera ou estava vivo, esperava uma luz, algo que revelasse o estágio em que se encontrava. Enquanto isso, sentiu uma dor enorme na perna e tomou acordo de si, estava sendo picado por um escorpião. Imediatamente, lembrou-se da onça, mas ela não estava por ali, nem viva, nem morta. Levantou-se, caminhou alguns metros, tremelicando e encontrou um umbuzeiro carregado de frutos, colheu uns três ou quatro e começou escavar o tronco da árvore com o facão, sabia que a raiz armazenava boa quantidade de água. Saciou a sede e depois alimentou-se fartamente de umbu. Não era seguro andar de dia na estrada, recobrou as forças esperou o sol se pôr e retomou o caminho, menos preocupado, já estava há muitas léguas do acampamento. Na terceira noite cruzou uma estrada, não se importando pra onde ela o levaria, mudou sua rota, precisava largar a trilha por onde os capangas dos grileiros trafegavam. Pegou a nova estrada e a partir daí, arriscou andar também de dia e fazer um pequeno descanso à noite.
Sentia muita sede, já estava no quarto dia de viagem, andara o dia todo na nova direção que tomara, mas nem sinal de gente, nem barulho de carro escutava mais, porém, não desanimou, não há estrada que não leve a algum lugar, haveria de chegar em local habitado. Subiu numa árvore, a muito custo, enxergou uma fumaça muito longe. Andou em torno de duas horas e deparou-se com um casebre de onde saiu uma velha.
- Bom-dia – falou com a voz arrastada de quem tem fome e sede.
- Quem é o senhor?
- Sou Antônio de Júlio Verne. Estou perdido, com fome e com sede. Fui contratado para trabalhar numa fazenda de Goiás e fugi depois de três meses sem nada receber. Faz quase uma semana que só como imbu.
- Pois você já está no Maranhão. Vou preparar uma comida para o senhor, mas só temos peixe seco e arroz.
- Tá bom demais! Mas por favor, primeiro me dê água. - Posso assentar nesse banco?
- Se quiser, pode até dormir, enquanto faço o almoço.
Exausto, Tõe Véi dormiu por algumas horas.
- Ei, o almoço tá pronto, venha comer.
A velha serviu a mesa, simples e rústica como a dona. Enquanto comiam ela disse:
- Eu sou viúva e tenho um filho morando em São Paulo, só não morri de fome ainda, porque meu marido me deixou esse filho. Agradeço a Deus todo dia, não preciso de riqueza maior do que um filho bom como aquele.
Tõe Véi contou sua história, como saiu do Piauí e como estava voltando, sem nada, com as mãos abanando, nem a mala trouxera de volta, deixara tudo no acampamento, somente o facão tinha apanhado, mas o esqueceu no tronco do umbuzeiro onde arrancara uma raiz para extrair água.
- Passa carro por aqui?
- Passa! Uma vez por semana, passa um jipe levando gente para o Povoado Sabonete, mas o dono do carro é miserável, não carrega de graça nem a mãe dele. Você tem dinheiro?
- Não!
- Pois tome aqui uns trocados pra pagar a passagem e fique na beira da estrada, já está na hora do jipe passar.
- Não sei como agradecer à senhora. Não tenho como lhe pagar. Deus lhe pague.
- Já pagou há muito tempo, Deus paga adiantado.
- Tô ouvindo barulho de carro.
- Pode correr pra estrada que é o jipe. Num precisa se despedir, se demorar, vai perder o transporte, aí, só na semana que vem.
- Inté!
- Inté!
Alguns anos depois disso, mais precisamente em 1984, conhecemos Tõe Vêi em São Félix, contratado para fazer a limpeza do Posto Avançado do Banco do Brasil. Tinha o maior respeito com o Supervisor e sempre procurava dar notícia em primeira mão.
- Seu suprevisor, o senhor ficou sabendo que Imbira Grande morreu?
- Soube, Tõe Véi. Indira Gandhi era conhecida mundialmente, fora a primeira mulher a ocupar o cargo de chefe do governo indiano.