O NERD
Depois de trabalhar durante cinco anos no departamento administrativo de uma empresa de alimentos, Arnaldo começou a ter problemas. Chegava tarde ao trabalho. Bebia. Foi encaminhado para avaliação psicológica. Os amigos ficaram revoltados.
– Justo ele!.. Tão bom amigo, tão popular – comentava a turma da cerveja.
Todas as sextas-feiras, à tardinha, depois de sair do trabalho, a turma reunia-se no bar da esquina para beber e contar piadas. Arnaldo era o rei. Entre cervejinhas e batatas fritas divertia o grupo, contando piadas com o jeitinho de Ary Toledo. Plínio, apelidado Dumbo pelas orelhas de abano, chegava a chorar de tanto rir... Arnaldo sabia imitar voz de mulher, voz de velho, voz de tímido, voz de cafajeste. Esse Arnaldo deveria ser ator! - comentava Dumbo, grande admirador do piadista.
Alguns achavam que essa turma da cerveja era de nada. Não falam de nenhum assunto interessante, só bebem e contam piadas, reclamava Antônio enquanto entregava um relatório para João, chefe do setor. Isso é bom para um dia, continuou, mas já faz cinco anos que essa turma se reúne e é sempre o mesmo.
Arnaldo não só era bom em contar piadas. Ele era bom em inventar piadas, tinha uma certa capacidade de ironizar os companheiros... Algumas de suas frases ficaram famosas como: “O bumbum de dona Dolores, é tão grande que dá dores.” “ O estagiário é tão magro, que uma azeitona é suficiente para o almoço ”. “Joanita é tão obesa, que vestida de verde parece uma mesa de sinuca”. Enfim, o Arnaldo gostava mesmo de zombar dos outros.
Essa sexta-feira o escritório estava agitado. Os funcionários conversavam entre eles. Os encarregados de diversos setores murmuravam palavras nervosas. Na segunda-feira chegaria um cara novo, indicado pela diretoria. Um novo gerente, inteligente, jovem e inovador.
– Inovador como um tambor - brincou Arnaldo.
Segunda-feira de manhã, logo cedo, o estacionamento já estava lotado. Os funcionários ocuparam seus lugares. Até Vaninha, a secretária, chegou 15 minutos antes e ligou o computador. Os olhos estavam fixos na porta de vidro. Tânia, da contabilidade, espionava pela janela.
Um carro preto, importado, estacionou na vaga preferencial. Dois homens saíram do carro, ambos vestidos com ternos escuros. Tânia gritou: Deve ser ele!.. Deve ser o novo diretor!..
Minutos depois, a porta do elevador abriu-se. Dois homens caminharam lado a lado. Arnaldo zombou: Homens de preto, no silêncio da sala e avançou alguns passos em direção à porta de vidro. Um funcionário abriu a porta. Arnaldo não podia acreditar...
– Meu Deus! Esse cara foi colega de escola... depois se formou e foi para o exterior. Nós o chamávamos de nerd... nerd... nerd Ental... nerdental!.. Porque era um verdadeiro nerd. Gostava de ler história, arqueologia, filosofia, sei lá, essas baboseiras. Esse cara vai ser o diretor da empresa? Quem diria!..
O dia passou rápido. Arnaldo percorreu todas as escrivaninhas contando para os colegas anedotas da época de estudante. Coitado do Zulmar, o novo diretor, tinha medo de falar com meninas. Coitado do Zulmar, o novo diretor, era o melhor da turma em notas, porque o cara era um pateta. Eu sempre pegava peças nele, gabava-se Arnaldo.
Três dias depois, os funcionários foram chamados para falar com Zulmar. Quando a secretária chamou por Arnaldo, ele piscou um olho para Vaninha e entrou na sala, pintada de branco com grandes faixas roxas e cópias de quadros famosos na parede direita, olhando tudo com ar triunfante. Quando Zulmar foi dar-lhe a mão, ele esquivou-se e lhe deu dois soquinhos no ombro para mostrar que era o dono da situação. Logo, sorridente, sentou-se na poltrona e colocou os pés sobre a escrivaninha.
O diretor sentou-se em seu lugar, em silêncio, e pegou a ficha. Olhou-o fixamente por algum tempo e por fim falou:
– Há cinco anos que você tem o mesmo cargo.
– Sim, eu não ligo para isso, mas se me quer nomear chefe estou disposto a chefiar a empresa – brincou.
– A empresa vai entrar um novo ritmo de trabalho, queremos qualidade total – explicou o diretor com seriedade. – Lamentavelmente, você não se adapta bem a mudanças. Disse as últimas palavras com tom autoritário.
– Não, não é isso Nerdental!.. falou rindo Arnaldo.
O diretor não riu. Ficou em silêncio. Apoiou as costas na cadeira e, por alguns minutos, ficou balançando a cadeira enquanto fitava Arnaldo. Ele começou a ficar nervoso. Depois o gerente fez algumas anotações na ficha e olhando fixamente para o funcionário, disse com voz indiferente:
– Pode passar pelo RH.
– Não, escute, só falei Nerdental para lembrar dos velhos tempos. Não precisa.... não...
O diretor, impassível, pediu para a secretária chamar outro
funcionário. Arnaldo saiu gritando, sentiu-se injuriado com a atitude do diretor. Mas teve que obedecer e falar com o gerente do RH. Lá começaram os problemas. Depois de cinco anos de trabalho, Arnaldo começou a ter problemas na empresa. Foi nesse momento que a turma da cerveja ficou revoltada. Arnaldo foi encaminhado para avaliação psicológica.
– Sabe por que está aqui? – perguntou a psicóloga.
– Sim! – gritou Arnaldo – porque esse nerd miserável, cretino, foi nomeado diretor e se acha o dono do mundo e...
Arnaldo ficou quase uma hora falando mal do diretor. A psicóloga entendeu que Arnaldo tinha raiva reprimida, não apreciava o triunfo alheio e tinha problemas de relacionamento.
– Com a turma da cerveja, dou-me muito bem! - gritou o Arnaldo para defender-se.
A psicóloga olhou-o atrás de suas lentes grossas. Predisposição para alcoolismo – escreveu em seu caderno de notas.
Coitado do Arnaldo. Foi rebaixado para auxiliar. Começou a freqüentar o bar todos os dias, até que chegou ao trabalho bêbado, quase caiu sobre o computador, derrubou alguns papéis, deitou-se na cadeira e dormiu.
O chefe do setor falou em despedi-lo, mas o novo diretor, com muita calma, explicou que alcoolismo é doença e pediu para o encarregado ser paciente e falar com o R.H para achar uma solução.
A notícia se espalhou, e todos ficaram comovidos. Comentavam que o novo diretor era um homem justo e queria ajudar os funcionários problemáticos.
Arnaldo não queria falar com a psicóloga, mas foi orientado a fazer terapia para continuar no emprego. Dia a dia sua raiva era maior. Tudo estava bem antes de chegar esse nerdental. O Dumbo foi o único que continuava apoiando-o. Os outros afastaram-se da turma da cerveja e começaram a escutar com atenção o que dizia o diretor.
Esse cara é um vitorioso, comentavam os funcionários.
Arnaldo odiava o diretor. E seu ódio era autodestrutivo, pois o diretor, longe de ser menosprezado por ser nerd, como na época de escola, era admirado pela maioria. ¾ Um cara inteligente, que veio de baixo... um verdadeiro exemplo!..
Uma noite, Arnaldo chegou à casa de sua irmã, quase bêbado e gritou durante vinte minutos seu ódio contra o novo diretor da empresa.
Paulino, o cunhado, tranqüilo, disse para Arnaldo aceitar a realidade.
– Talvez o novo diretor o esteja sacaneando. Se o diretor tem um plano para prejudicá-lo, ele o está fazendo com tanta classe, que ninguém enxerga a verdade. Arnaldo, você deveria seguir o que falam as pessoas bem sucedidas. Não conhece essa frase do famoso empresário Bill G., que está rolando na Internet?
– Não!.. Qual frase?
– Bill G. disse para um grupo de estudantes: “Nunca zombe de um nerd, pois um deles será seu chefe”.
Isabel Furini é escritora e poeta.