SEU MANUEL PRETINHO E O PRECONCEITUOSO
De pretinho, a capricho, e retinto, o paraibano era reluzente. Parecia esculpido em madrepérola. Nunca vi, antes nem depois, nunca vi tanta negritude num mesmo cristão. Viera, segundo a boca do próprio, lá do sertãozinho de Catolé do Rocha, um muito longe do território de Augusto dos Anjos, o excelso poeta que morreu desventurado.
Em Fortaleza, fazia uma batelada de janeiros, ele se aquartelou no Monte Castelo, bairro que depois virou de classe média, medianamente média. De carona nos tempos áureos, e sendo ainda varão de muque e topete, adquiriu chão estreito e ergueu telhado. Casinha simples, sem maquilagem, porém plantada e regada em ruazinha principal: a transitadíssima Rua Padre Anchieta.
Ao açucarado Manuel lavrado e juramentado pela pia batismal, com o devido parecer dos pais da criança, povo e cabroeira do bairro fortalezense lhe adicionaram o epíteto de “pretinho”, tratamento que o catoleense iria, então, levar pela vida afora com muito gosto, e gosto prazeroso.
Na verdade, como convém, aqui, pregar no papel, uma alma bondosa de ninguém, que carregue par de orelhas bem ajustadas, lhe poder timbrar defeito sem fundamento. Seu Manuel Pretinho recebia sua nova graça com a maior boa-fé, como dádiva dos céus, tudo nos alicerces do carinho. E, assim, ele convivia com a paz no patamar do rosto.
Pesadão pela idade, anoso, coitado, ainda abastecia de água as jarras e moringas do pedaço, jumento abaixo e jumento acima. No entanto, até o bicho bruto, afeito à parceria de rua, era acariciado com delicadeza pelo rebenque macio do ancião, velho sempre respeitador e cordial. Macieza de pessoa, ah, se era!...
Ele agradava as crianças, paparicava “coroas” (homens ou mulheres) e, por cima, desnudava-se todo em ternura para senhoras ou bobocas amojados de arrogância. E andadeiro atrás da carga d’água, em riba do passo do companheiro de ofício e outros achaques do caminho, conforme sentencia o pessoal, o preto de Catolé do Rocha, Paraíba, Brasil, era aquele camarada que um freguês, a despeito da cor que levasse na pele, podia com segurança e fartança batizar como “gente da gente”. Até outros zinhos, tocados de certos laivos de racismo, levantavam tabuleta de opinião a favor do homem: – É um negro, mas de alma branca.
O tal gente-boa, e não será exagero algum, apesar de engolir no suave, só ofendia água que passarinho não bebe. Era chegado a uma cachacinha. E, assim mesmo, para não perder de vista os marcos da estrada, tomava apenas uma e outra talagada no correr dos cascos do jerico que tangia.
Ah, lembrei-me hoje daquela maciez e cortesia de sujeito!... No corpo, de branco, somente uns olhos alegres, remelexando nas caixas, que dentes, mercê dos anos, já os não levava mais. E paternal estava ali. Agora eu o ouço no proseio do balcão de meu pai, reiteradas vezes a mim se referindo.
– Seu Ciço, esse bichin’ é ver seu Joãozinho Bilé, lá da minha terra, na Paraíba. Era menino levado, mais interesseiro nos estudo. É escritozin’ a seu Joãozinho Bilé: devoto dos livro, finin’ de corpo, mas porém encapetado, visse?
Hoje, repassando na mente o “aguateiro” bonachão e longínquo de seu Manuel, vendo com a memória o próprio rosto jovial do macróbio, bato de nariz com o irrefletido Edmundo, aquele polêmico jogador de futebol carioca, que teria xingado um juiz, em pleno campo, chamando-o de “seu paraíba” e coisa e tal. Na verdade, o árbitro era cearense, mas tascar o “paraíba” foi a medida certa do xingamento.
Ih, meu preconceituoso atleta, tão goleador que és e/ou era, que indefensável bobeira tu cometeste, ao ironizar o Nordeste, em particular a Paraíba, quando, anos atrás, mais uma vez, foste expulso de uma partida, em Natal, capital potiguar.
Sem desejo de atiçar rivalidades regionais, mas com muito dó da raquitice da tua educação (?), sem saber e talvez sem querer, tu mexeste com os brios do honrado “paraíba” que conheci, botando água de porta em porta.
Sendo discriminado, ô rapaz, qualquer fleumático reagia aos teus desaforos, ainda mais diante de um árbitro que se sentiu ofendido. Assim, apito na mão, rá, ré, ri, ró, rua! Mesmo o Lins do Rego, daquele bonachão e cândido, até o grave José Américo de Almeida, autor de “A bagaceira”, e nem falo do neurastênico Augusto dos Anjos, do outro lado da ponta da tua má-criação, qualquer um filho de Deus, incluindo aí João Pessoa, Elba Ramalho e o Ariano Suassuna, qualquer um, sem sangue de barata, te confeitaria a tela de tabefes. Não que eu faça apologia à violência, está claro.
Contudo, estou convencido, em face da tua ofensa de mal-educado e preconceituoso, ao malferir a nordestinidade de um juiz de futebol, o heroi negro e maduro dos meus verdes idos apenas te apagaria, na cara, o seu (lá dele) habitual e juvenil sorriso. E para que vendeta mais cruel, eficaz e permanente?
Fort., 23/10/2008