A D I S C Ó R D I A (HIST. DO BIDÚ 11)
Quando você não tem e ainda consegue dar, é uma dádiva de Deus, porque você deu a última coisa que possuía. Você se despojou, esvaziou-se para se preencher. Mas quando lhe é arrancada a sua única preciosidade, você se enche porque foi esvaziado, isso é um princípio formador (Arché).
A vida é filosofia, e em filosofia os poros têm que ser preenchidos constantemente, o caráter aporético se faz presente sempre, e daí surge a beleza da vida, sem vazios neutros.
Bidu sempre foi este agente integrador. Ele esparramava para melhor unir. Ele sempre dava sem que lhe pedissem, e nunca pegava sem anuência; porém, em se tratando de bens de cônjuge se desapercebeu e passou a mão no “Sabril” da dona Paulina para limpar os “bogues” (estribos da sela de montar).
Era uma linda sexta-feira ensolarada como sempre. Naquele dia a sua alegria estava extrapolada, algo maravilhoso estava para acontecer, imitava até o canto dos pássaros, e olhe que ele tinha uma verdadeira sinfônica em casa. Várias e várias eram as gaiolas com variados pássaros: curiós, pintassilgos, azulões, pássaros-pretos, gurinho, cardeal, sabiás e outros. Quando ele queria extravasar a sua felicidade, turbinava os bichinhos, dando uma semente parecida com a de canabis sativa para os curiós, pimenta malagueta para os sabiás, ovos para os canários da terra e para os belgas.
Só sei que Bidu, naquele dia, estava realmente feliz. Caminhava pra lá e pra cá, assobiando, fiu, fiu, fiu... Na realidade, tudo aquilo fazia parte de seu teatro. Ele estava mesmo era disfarçando para dar o bote em dona Paulina, esperava somente a hora exata. Dito e feito. Foi dona Paulina se descuidar e ele como quem rouba, passou a mão no seu Sabril e sorrateiramente saiu em direção ao armazém de cacau, no qual guardava a sela do seu Brioso.Seguro de si, achando que dona Paulina não daria falta do precioso bem, desmontou a sela, tirando todos os metais e logo foi tratando de limpá-los, poli-los.
Como vocês sabem, Bidu era muito exibido. Só vestia roupa de festa, paletós de puro linho e tinham que estar bem engomados; as suas botas cavalariça eram tão bem engraxadas que serviam como espelho; o seu Smith West niquelado e cabo madeperóla estava sempre limpo e azeitado. Polia até as balas, que pareciam ser de ouro; os cabelos sempre arrumados. E a sela de seu Brioso era a mais valiosa da região, pois era ornada com peças de prata. Assim, quando ele riscava o Brioso, na rua do Cacau, era como se estivesse rasgando uma linda Ferrrari vermelha pelas ruas de Monte Carlo. Era sucesso garantido.
Ôme, seu menino! Bidu viajou no pensamento, e cada esfregada que ele dava no metal era como se já estivesse acariciando aquela que seria a sua presa no dia seguinte.
Galopando a sua ilusão a toda velocidade, não percebeu que o mundo estava prestes a desabar sobre si e quando menos esperava, deu de cara no chão, projetado por uma bela cacetada aplicada, por trás, por dona Paulina.
Quando conseguiu se situar novamente no mundo, deparou-se com ela prostrada a sua frente, espumando, ciscando e berrando de raiva. Antes que conseguisse recobrar as idéias, tomou mais uma cagedada de safanões , aplicados simultaneamente sem lhe dar chance de reação. Não tendo outra possibilidade, correu para o meio do terreiro. Lá, longe de dona Paulina e já recobrado do susto, danou a gritar e a falar palavrões (seus palavrões não eram imorais, e sim, profanos, tais como: “ Seu fiu dessa! Seu fiu daquela! Fiu dum cabrunco...! Fiu da Gota Serena...” e assim por diante. O mais pesado era “seu fiu duma lascada”!.
A baixinha não se satisfazendo com a cacetada que havia lhe aplicado no pé-do-cachaço (pé-de-ouvido), catou um pedaço de pau e rumou pra cima. Ele ainda tomou algumas bordoadas, mas conseguiu dominá-la.
Foi a partir daí que começamos a entender do que se tratava. Ela que areava as suas panelas com um sacrifício danado, pois tinha que caçar areia, peneirá-la, depois pisá-la peneirada e peneirá-la novamente numa peneira mais fina, para conseguir o produto final para o polimento das alfaias. Havia encontrado no armazém do Senhor Manuel um produto melhor e menos trabalhoso, era um tal de “Sabril” – esponja de aço que vinha acompanhada de uma pedra chamada sapólio. Nossa! Quando ela começou a fazer uso desse produto e percebeu que era uma ótima ferramenta para massagear o seu ego - ela se realizava através da limpeza da sua casa e coisas -, aquele objeto passou a ter valor sentimental, e Bidu com sua irreverência e irresponsabilidade invadiu esse mundo particular e valoroso, ainda com um agravante, estava usando o produto “sagrado”, para melhor se exibir às suas quengas na rua do Cacau. Ah! Isso não! Aí também já era demais! Passou dos limites.
E foi imbuído desses pensamentos e sentimentos, que dona Paulina partiu para cima de Bidu e o resultado desse panavueiro todo, de certa forma, sobrou para mim. Ela preta de raiva, me catou pela asa e me arrastou até a fazenda do Senhor Petronílio. Lá chegando, era uma bela casa balaustrada, trataram logo de confortar minha mãe, oferecendo-lhe suco de tamarindo e depois conversaram por um longo período.
Enquanto isso, fiquei perambulando pela redondeza, e nessa perambulância encontrei um toco de facão. Quando minha mãe se acalmou mais, viemos embora. Cheguei a casa todo feliz com aquele toquinho de facão, porém minha felicidade logo se transformou em tragédia. Meu pai que ainda estava espumando de raiva, pois havia apanhado de minha mãe e aquilo para ele era o fim do mundo, sendo fanfarrão e contador de vantagem como era, sentia-se aniquilado. Ao me ver com o pedaço de facão, foi logo querendo saber onde eu tinha arrumado aquilo. Contei-lhe a história. Nossa! Se minha mãe não entrasse no ringue novamente, ele tinha me trucidado, tamanha era a sua ira e não menor a sua honestidade e honradez. Não me bateu, porém me fez retornar à fazenda do homem e devolver o pedaço de facão, e aos berros dizia: - Se ninguém lhe deu, então você rouboooou! – acusava-me. - E fio meu num vira ladrão, não!
Como já estava escurecendo, entrei em desespero, até que minha mãe se ajeitou com um trabalhador chamado João da Luz, e fomos devolver a porcaria do pedaço de facão.
O Senhor Petronílio ficou abismado com a história que João da Luz lhe disse, mas por final concordou com Bidu. Mandando-nos embora, pois a noite já caía, pegou o pedaço de facão e entregou-o para João da Luz, dizendo: - Diga a seu Bidu que eu estou dando o facão para o menino.
Fomos embora para casa. Lá chegando, ele viu o coitado do João da Luz com o pedaço de facão e antes que o homem pudesse se explicar, ele já foi tirando as suas conclusões. Achou, porque já estava escuro, que o homem o havia enrolado e não tinha ido até a fazenda do Senhor Petronílio. Partiu para cima do homem com aquela ignorância do diabo. O homem se esquivou e, por final, conseguiu transmitir o recado. Ele, com aquela cara de errado, simplesmente bateu o chapéu nas pernas e disse: - Êta, diabo!
Resolvido meu caso e, parcialmente, o de dona Paulina, quem ficou mesmo com a batata quente foi Bidu, pois além de não ter limpado os metais da sela, ainda perdeu a grande maioria deles, pois dona Paulina jogou-os fora e, ainda por cima, proibiu-o de ir à festa, ameaçando-o com separação.
O que deveras o apavorou não foi a possibilidade de ela o deixar, e sim, o complemento, pois ela dizia: -Vou embora e largo todos esses meninos aí pra você tomar conta! Isso sim, o apavorava!
Essa é uma das poucas histórias tristes de Bidu, pois de uma cacetada só quatro pessoas sofreram. Paulina e seu Sabril, Bidu e a cacetada de pé-de-orelha, eu e o facãozinho e a quenga, seu amor proibido.
Nessa história, só tenho dó de Bidu, o único inocente.
Não devemos esquecer que amar é a maior manifestação de caridade e que todas as formas de amor valem a pena!
Nossa! Que história!