Afogados da Ingazeira

Foi tanta coisa que me aconteceu que nem sei mais por onde começar.

Bem, se é assim, iremos por partes: Meu nome é Graciano, nascido e criado em Pernambuco, na cidade de Afogados da Ingazeira, interior onde o sol bate meio dia o dia inteiro, onde crianças carregam cabaças do tamanho do abdome e mulheres com pouca roupa sentam-se em frente às suas casas para tecerem passadeiras intermináveis. As crianças cantavam cantigas de roda lá na baixa da capoeira de campina, meninas de mãos dadas giravam dentro e meninos fora. Quando o refrão começava, todos davam um passo para dentro da roda, coisa inocente, mas nem tanto, e era nessa hora que os meninos esfregavam as coxas sutilmente nas bundas durinhas das meninas. Era uma brincadeira sadia, coisa de muito se ver, e nas festas juninas é que se encontravam as meninas mais bonitas, de vestidos que revelavam curvas onde antes era semelhante a um cacete de Quixaba. Lembro-me de uma tarde, quente e seca, minha mãe tinha feito um bolo de rolo com recheio de laranja da terra, e eu corri para a ciranda com um pedaço na mão. Como lá em Afogados da Ingazeira nós tínhamos o costume de compartilhar tudo, tratei de rasgar pedaços desproporcionais para todos os presentes. Lambia os dedos ao rasgar tão delicioso bolo e, quando ia morder a parte que me sobrou olhei ao longe uma menina de pele clara que corria em nossa direção, Marianinha, garota de olhos de rapadura e cabelos cacheados cor de terra molhada. Ela era tão doce quanto o bolo que eu ia comer, mas ao vê-la chegando perto, estendi o braço relutante e dei-lhe a minha parte. Marianinha pegou o bolo de laranja com as duas mãos, não que o meu pedaço fosse grande, ela mais parecia um roedor devorador de bolos de rolo, mas não faz mal, em casa tem mais e com os dedos melados começamos a cantiga:

Todos que aqui estão presentes

Hoje é que vão descobrir

Se as meninas estão quentes

e os meninos a sentir

Canta moço cantador (e encoxava)

e se a sua moça aqui está

se o senhor canta de dor (encoxava de novo)

ou por ela vai cantar

Digo pro senhor que me lembro perfeitamente dos versos, de tanto eles recitar. Hoje fica em minha memória, aquilo é coisa de levantar pêlos do braço e molhar meus olhos de saudades, mas ainda não acabou não. A tarde estava queimando as solas e as mães começavam a gritar ao longe os nomes dos filhos. O meu eu não ouvi não, talvez a minha mãe não se preocupasse que eu anoitecia na rua. Todos iam embora com o riso frouxo, e assim a roda foi definhando, até sobrar por ironia do destino, eu e Marianinha. Chamei-a para se refrescar. Corri para a cisterna e lancei um balde vazio, puxava a corda com determinação tomando cuidado para não derramar uma só gota de volta. Quando chegou na borda, descansei o balde no dedão direito e com as mãos em concha peguei um bom bocado de água. Molhei o rosto. Logo depois tirei a camisa e joguei mais umas duas mãozadas nos cabelos. Marianinha permanecia quieta, sentada no cimento e olhando para o chão. Perguntei-lhe se ela não queria água, ela aceitou. Levantei imponente o pesado balde e coloquei-o entre as suas coxas. Marianinha com sua pequenina mão pegava receosa aquela água lamacenta e levava-a ao rosto. Eu, no entanto, tentava imaginar qual seria o gosto daquela boca. Uma boquinha pequena e vermelha acompanhada por um pescoço fino e olhos de rapadura. Com o rosto molhado ela me fitou e sorriu. Que coisa quente era aquela que caminhou pela minha espinha, que sensação era aquela que me remoçou o estômago? Estendi a minha camiseta para Marianinha secar o rosto, ela sem hesitar esfregou-a brutalmente contra o rosto e depois a enfiou em cada narina como se procurasse algo. Lógico que eu não gostei, e também é lógico que não ia comentar, afinal era de Marianinha que estávamos falando. Peguei o resto de água e devolvi à cisterna. Perguntei também se ela tinha gostado do bolo que a minha mãe havia feito, ela concordou. Chamei-a para comer um pedaço lá em casa, mais uma vez a menina concordou corajosamente. Naquela época, naquele lugar, a gente não sabia muito bem esse negócio de sexo e tal. A gente só roçava um no outro, tudo naturalmente, ninguém explicava pra gente.

Fui caminhando esperançoso na frente dela, Marianinha apertou o passo só para me pegar pela mão e me arrastar para um outro lugar. Dizia ela que queria me mostrar uma coisa, lógico que eu ia ver... Iria até o inferno por ela! Assim foi, fomos. Ela me levou para uma cerca de madeira onde se via uma pastagem do outro lado, muitas cabras e bodes mastigando algo que deve ser uma delícia, pois não queriam engolir. Nós ficamos lá debruçados na cerca e vendo aquela coisa chata. Mas nada era tão especial que quando o vento soprava para o meu lado, e presenteava-me com o cheiro de relva e Marianinha, eu não agüentava mais, parecia que eu ia explodir quando algo de diferente aconteceu, Marianinha me cutucou silenciosa e apontou para o pasto, na direção de um coito muito bem feito por sinal. Ela achava engraçada a cara que o bode fazia e dos gritos da cabra que eram estocados pela singeleza do macho. Mas o que a menina não sabia era o que acontecia lá, Marianinha achava que eles estavam brincando; ora essa se é assim eu queria brincar também. Ela sorria de mostrar todos os dentes e eu forçava o riso também. Olhava aquele ombro descoberto pela alça do vestido e me adiantava à tarde que estava por fenecer.

Coloquei prontamente a alça do vestido dela no lugar, ela parou de sorrir e ficou um tanto encabulada, Marianinha me fitava curiosa, num misto de aventura e dúvida. Voltei a observar o pasto e esperei por alguma ação que me fizesse agarrá-la. Nada. Mais uma vez eu voltei os olhos para a menina que começava a esboçar outro sorriso apontando para mais um casal feliz de cabras. Naquele momento respirei fundo e soltei um graveto que havia pegado para não sei o quê. Grudei a menina na cerca e dei-lhe um beijo de tontear valente, a menina ficou imóvel, tive medo... Quando tirei o meu rosto de perto do dela, ela me olhou, soltou um breve sorriso, virou e saiu correndo. Não tive dúvidas ao correr atrás dela aos gritos e risadas. Marianinha sorria. Estávamos voltando ao pé da cidade quando eu consegui pegá-la, agarrei-a pela cintura e a grudei junto a mim, assim como nas cantigas de roda, do mesmo jeitinho... De pica dura e tudo mais. Chamei a menina para comer mais daquele bolo de rolo que ela tinha adorado, ela concordou, conduzi-a pela mão com ríspida doçura e corremos pela cidade com fugaz intensidade. Passamos por janelas onde mulheres apoiavam as cabeças com os pulsos malmente dobrados, cumprimentei o dono da mercearia e alguns conhecidos que ainda estavam pela rua. Desviamos de alguns bêbados que descansavam calmamente na frieza do cimento da calçada quando eu avistei a minha casa. A luz estava acesa. Naquele momento a mãe da Marianinha já estava a esperar por ela enquanto a minha mãe devia de estar costurando ou desfazendo algum ponto que cerziu erradamente. Achei melhor não ir para lá, corremos para outro lugar, as luzes da cidade iam diminuindo enquanto corríamos de mãos dadas, chegamos em uma cocheira velha, sem ninguém e sem nenhum. Lá não tinha porta, por isso entramos sem fazer cerimônias. Marianinha, facilmente conduzida, colou as costas na parede ao lado da porta enquanto eu já arriava a bermuda mesmo antes de saber o que seria. Levantei seu vestido e tirei a calcinha, foi tudo tão rápido que eu nem me lembro de ter aproveitado tanto. Nem mesmo apalpá-la eu consegui, a única coisa que eu fiz foi dar um passo à frente e abrir um pouquinho as coxas dela. Nem sei se foi pra dentro ou nas coxas, só sei que foi bom pra caramba, mas bom mesmo foram as arranhadas e mordidas que ela me dava nos ombros e pescoço. Nem um beijinho nós demos, assim como as cabras do curral. Sanfonas soavam ao longe e eu sabia mais que ninguém que os anjos não tocavam harpas, eles tocavam sanfona. Terminei quando senti uma tontura doida, coisa que até hoje não consegui mais sentir. Um calor no oco da cabeça que começava na nuca, uma suadeira sem molhar o corpo, coisa que não consigo explicar. Acho que eu só conseguia sentir isso com Marianinha, até hoje eu não consegui sentir de novo. Terminei dando um abraço cansado nela, ela respirou fundo, fungando uma única vez antes de sair por debaixo do meu braço e sair correndo. Ela correu ajeitando a saia e os cachos cor de terra. Eu sentei no chão com as estrelas à um metro de meus olhos, quase conseguia tocá-las, não peguei nenhuma porque não quis. Coloquei as mãos espalmadas no chão para apoiar o meu corpo de homem grande, e toquei algo estranho bem debaixo donde ela estava. A calcinha de Marianinha ficou lá. Peguei como um troféu e cheirei profundo aquela relva de menina. Coloquei a bermuda e guardei a calcinha no bolso direito, era o meu troféu, a minha prova que eu era um homem. Não precisava mais mentir para ninguém, inventar histórias, nada disso. Era verdade por mais que parecesse sonho. Ergui-me calmo como se a brisa me empurrasse para cima. E foi também o vento que levou-me para casa pelos calcanhares. Foi a noite mais feliz da minha vida. Agora se o senhor teve a paciência de me ouvir, peço-lhe mais uma vez a paciência de me deixar terminar, pois o que se sucede não é tão bonito não. Quando cheguei em casa, na porta de casa para ser mais específico, vi que a luz ainda estava acesa, logo pensei que ia levar uma surra de fivela da minha mãe, por ter gastado um litro de querosene no gás do candeeiro. Achei melhor dar uma volta na casa para ver se ela estava com a comadre dela, assim eu apanhava menos. Espiei pela janela da cozinha, vi o fogão ainda em brasa, com uma panela a queimar algo em seu interior. O bolo de rolo em cima da mesa faltando apenas o pedaço que eu peguei pela manhã. Algo estava errado. Olhei no quarto e vi a cama arrumada, e em cima dela o maior sortimento de flagelos me esperando. Marmelo, cinta de couro bruto, fivela esporada, dois pés de chinela, até toco de quixaba tinha lá. Andei mais um pouco, agora sim eu suava. E ao olhar pela varanda na janela da sala vejo Marianinha sentada numa cadeira de três pés, cadeira comum por lá assim não precisa nivelar o chão. E muita gente em volta dela. A menina chorava, a conversa eu não conseguia ouvir não, mas já imaginei do que se tratava. O coronel estava andando impaciente em volta dela, mas quem era ele? Pela proximidade deve de ser da família. Minha mãe coçava a cabeça apreensiva, e algumas mulheres lamentavam entre elas. Vi que não era bom eu entrar naquele momento. Achei melhor esperar aquele povo todo sair de lá. De repente o coronel ficou vermelho que nem goiabada, puxou o revólver e gesticulou em brados. No susto que eu levei, tomei muito ar de uma única vez e soltei um som qualquer. Daí foi o meu erro. Uma das senhoras que estavam sentadas voltou-se para a janela e me viu, apontou para mim e começou a gritar, todos me viram e sem pensar de novo eu saí correndo. Debaixo de gritos de: -Cabra Safado! Rasta ele! Pega o fiduma! Vai ver seu puto! Tapa lá! Tapa na oreia! e por aí vai. Olhei por sobre o ombro esquerdo e vi um incontável número de gente a correr. Corri mais rápido. Vi mais uma vez as luzes da cidade sumir no chão de terra, mas perto da cocheira eu vi mais um bocado de gente com lampião na mão e facão na outra. Mudei de rumo e cheguei na mercearia do seu Clodoaldo. Tudo fechado. Mas escondido ainda ouvia ao longe os gritos de população revoltada. Botei o pé direito no barril de água e não sei como consegui chegar no telhado da mercearia. Espiava apreensivo por entre as telhas secas e mal encaixadas a população que corria como louca para a cocheira. Fiquei lá um bom tempo. Daí vi pequenininhos a minha mãe, duas comadres, o coronel e a Marianinha. Eles vinham andando em compasso diferente dos demais. Quando eles passavam em frente a mercearia, o coronel estranhou alguma coisa, um tecido que estava em frente a mercearia, ele se abaixou e catou-o com raiva. Daí eu meti a mão desesperadamente em meu bolso direito, nada... O Coronel gritava com o revolver na mão e olhando para dentro da mercearia: -Vai cabra safado! Saia daí para eu lhe meter uma bala na cara! Acabou com a minha filha! Seu sem vergonha! Canalha! a minha mãe pedia-lhe calma, mas não adiantava nada. O coronel, pai de Marianinha, começou a atirar pra dentro da mercearia, tremi mas permaneci sem dar nem um pio. Dessa vez eu não ia cometer um erro daqueles. Vi que eu tinha que tomar uma atitude, arranquei uma telha do telhado, era pesada, mirei bem na cabeça careca do fardado, respirei fundo. Achei melhor pegar mais uma. Lá estava eu com uma telha em cada mão, apoiado sobre o peito numa posição muito desconfortável, pensei: Melhor atacar primeiro a do braço esquerdo, pois se eu errar a segunda era mais precisa, pois eu escrevo com a direita. Quando eu ergui a mão esquerda, a comadre me viu e mais uma vez gritou. A telha já estava caindo, o Coronel desviou. Nem pensei em nada. Taquei logo a outra que pegou no revólver dele. Quando a arma caiu, pulei do telhado na cabeça dele. Foi um arranca rabo lascado, tapa lá, tapa cá, eu queria mesmo era sumir dali. Não queria peitar coronel, longe disso. As mulheres gritando, menos Marianinha. Percebi que a gritaria do povo aumentava em minha direção. Rasguei a minha camiseta nas mãos do coronel, escorreguei por entre as pernas dele e ainda consegui pegar a calcinha dela. Corri de volta para perto de casa com a população atrás de mim. Corria muito rápido. Pulei a janela da cozinha, peguei o bolo de rolo com recheio de laranja da terra, enfiei como deu dentro do bolso e corri em direção ao horizonte.

Nunca mais eu voltei para a cidade de Afogados de Ingazeira, ainda me dá uma saudade daquela de lá. Daquelas noites tranqüilas, dos papos de assombração ao pé das fogueiras, das incansáveis deitadas na rede da varanda de casa. A calcinha da Marianinha já tinha perdido o cheiro, mas eu forço a memória para ainda sorrir de saudades. O bolo da minha mãe, nem nunca mais comi um igual, já comi de vários, mas nunca mais aquele mesmo gosto. Acho que o doce só é bem doce quando a gente é criança, hoje em dia é simplesmente um doce. Naquela época ele foi o bolo que me fez conhecer Marianinha, naquela época tudo foi mais bonito e eu só escrevi, porque do jeito que anda a minha memória, dia desses, eu me esqueço dos detalhes. Fica aí pra vocês o último verso da cantiga de roda que eu esqueci de cantar:

Eita moço sonhador

veja o que vais fazer

pra não se danar de dor

pra você não se foder!