A AMANTE (HIST. DO BIDÚ 10)
A DOCA DO “ZÓIO”
A social irresponsabilidade de Bidu era tão grande que, mesmo sendo o seu representante legal na prole, não consigo me aproximar da fronteira geográfica que ele estabeleceu.
Bidu é incomparável. É aquele tipo de espírito que mesmo aprisionado no corpo de carne, em que a densidade da energia material reduz quase a zero os movimentos do ser, mesmo assim conseguia desfilar seu charme com grande desenvoltura, e quando se via cara-a-cara com alguém, deitava a sua inocência, encantando de imediato o indivíduo.
Ele era um espírito tão puro e isentado das coisas desse mundo, das formas e das ilusões, que era classificado pelos pseudo-sabichões de irresponsável e moleque e, pelos mais afoitos, de bestão, tonto e ignorante. Mas não era nada disso. Ele era mesmo um espírito inovador. Cheio de graça, amor, alegria, pujança e sabedoria. Ele era tão danado, que quando estava andando de carro pela estrada de rodagem “Bêia 2” (BR-2), dizia: - Menino, sabe lê? E se a resposta fosse positiva, ele acrescentava: - Então vai lendo aí os piquetes (que eram as placas de sinalização e informação rodoviária nos postes das estradas), porque andando de carro eu não leio, só presto atenção na estrada e ainda fico tonto.
Toda essa artimanha era para esconder dos outros o seu analfabetismo. Outra artimanha também muito usada por ele era pegar papel e lápis e danar a escrever o seu nome. Quem o via naquela situação, jamais imaginaria que fosse analfabeto. Vez ou outra, via-se em situação realmente periclitante. Era quando alguém inadvertidamente pedia-lhe para ler alguma coisa. Então, ele colocava em prática toda a sua habilidade com que tratava o próximo e, imediatamente, dizia: -Ô ôme, dê aí pra esse menino, que agora tô com as vista nuviada. Agora, na matemática! Ninguém o vencia. Ele pegava um litro de feijão, esparramava no chão da sala, e tome montinho pra lá e montinho pra cá, e ninguém o vencia na tal conta de tarefa. Vejam só! Tinha tempo ruim não. Bidu era assim mesmo! E Bidu é isso...
Quando dizia social irresponsabilidade, reporto-me à sua maneira despojada e irreverente de encarar as coisas da Terra. Ele achava a vida muito fácil e simples. Andava dizendo que a alma era de Deus e o corpo não, e quando morresse podia enfiar um pau no... e jogar o seu corpo nos quintos dos inferno; podia deixar em riba da terra para os urubús comer pois dessa vida não se leva nada, a não ser o que se viveu. A coisa que ele tinha mais raiva era de velório, pois dizia que todo cão dos infernos vira "santo" quando morre. E que se prestasse não ficava deitado de pé junto, e que Deus colocava o miserento assim, apeado como vaca, era pra não fugir e dar tempo pro capeta chegar e carregar pras profundezas.
Era com essas e outras que Bidu enfeitava as bordas do seu caminho. Ele tinha o dom de transformar qualquer picadinha numa bela estrada ajardinada, pois sua “irresponsabilidade-inocente” perfumava o seu trajeto, e atos tidos socialmente como gravíssimos eram por ele praticados com a leveza dos inocentes e se transformavam em grandes histórias de amor.
Namorador ele era mesmo! Bom caçador também! Ele dizia: - Pode ser gorda e grande, nem que não ande...! Manhoso que nem ele, só ele mesmo! Se quebrasse uma unha, já corria para cima da cama, gemia e gritava como um desesperado, até parecia que estava dando o seu último suspiro na terra; contudo, ai daquele que ficasse doente perto dele. Reprodutor de primeira qualidade! E foi com essas qualidades curriculares que desembarcou numa estância hidromineral denominada Jorro.
Por recomendação médica, em virtude de alta taxa de acído úrico, principiou um tratamento nas milagrosas águas dessa estância hidromineral. Paralelamente, tomava um medicamento chamado Urudonal, e só podia comer carne de bode temperada com ervas em forma de carne-de-sol e o seu precioso feijão, peneirado, que era para tirar a casca. Isso o deixava tremendamente amargurado. A coisa que ele mais gostava na vida (mais de feijão do que de mulher; primeiro ele comia o feijão, depois...) tinha se transformado em papa. Como dizia, deu início ao tal tratamento, e por lá perambulou por uns dois anos.
Certo dia, chega da cidade montado no seu lindo cavalo branco, e ao apear tirou dos alforjes uma carta e correu para dentro de casa gritando: - Minha véia, venha cá ! Corra. Leia aqui o que diz! – e com o braço estendido ofereceu-lhe a carta.
Minha mãe começou a lê-la e, de repente, desabou num canto, quase se afogando em prantos. Ele deu três pulos e danou a gritar: - O que foi, minha véia, o que foi? E ela, coitada, sem forças, ali parada, sem uma gota de sangue, sobressaindo somente a cor esverdeada natural a quem toma um grande susto. Calada estava e assim continuou; calada não, engasgada, desfalecida. Bem! Resumindo: tratava a tal carta de um assunto de vida e morte. Nessas suas idas e vindas à estância hidromineral, ele como era de se esperar, arrumou uma noiva, e quando questionado por ela se era casado ou solteiro, dizia-lhe simplesmente que era solteiro e que lá na fazenda existia uma “queima-feijão”, a empregada, mas que não era para ela dar bola para isto não, pois a danada era feia que doía e ainda era “doca do zóio” (cega de um olho). No meio das reclamações naturais dos amantes, a tal noiva ainda fazia menção a tal doca e recomendava: - Tome conta da doca direitinho, que é pra ela lhe tratar bem, pois o quero inteiro na próxima temporada. Estou morrendo de saudades, amor, paixão e muita t...
Nossa! O negócio ficou ruim.
Vou deixar vocês pensando no quanto o coitado do Bidu sofreu com esta historinha de amor, porque minha mãe, dona Paulina, era muito brava, cara! Nossa! Como era!
Ainda estou vendo a carinha do Bidu. Coitado!!!