ÁRVORE DE NATAL



Em novembro, uma chuva mansa veio anunciar que viria para ficar por tempo indeterminado. Contudo, um sol oportunista aproveitava a distração das nuvens e se abria em esplendor tímido, momento propício para sairmos de casa, deixando os móveis e utensílios inconformados, com pratos e panelas caindo desesperados dos armários, cadeiras se arrastando pela casa em sinal de protesto, livros dialogando na estante, escovas de dente e creme dental lamentando beijos adiados, portas que batiam e eram trancadas por mãos invisíveis.
O aguaceiro de novembro parecia não ter fim. Instalado no quarto, folheando um livro de Patativa do Assaré eu ouvia Les Quatre Saisons de Vivaldi, pensando nas festas de Natal que se aproximavam. Nas casas, as árvores estavam sendo montadas, cobertas de bolinhas coloridas, com pisca-piscas multicolores. Embora visse mais razões comerciais nas festas natalinas, ficava encantado com a criatividade das famílias. Até neve de isopor cobriam as árvores em um país onde não há neve. Pensei em Sebastião Benevides e em Dona Maria, católicos praticantes, velhos amigos e antigos vizinhos, que o acaso e motivos destrambelhados decidiram interpor em nossos caminhos. Quando nos encontramos, depois de alguns anos sem nos vermos, percebemos como o tempo é implacável. Através deles notei o meu envelhecimento. Falamos pouco, faltava assunto. Decidi por não entabular assunto corriqueiro, como até quando esta chuva vai continuar, e os meninos, como estão? Não queria pedi-lo para tocar seu violão e cantar as antigas modinhas que embalavam nossas tardes felizes no bairro Lindéia, porque não suportaria remexer o baú da memória, trazendo à tona lembranças amarrotadas. Porém, ele não se mancou, pegou o violão e com a voz rouca deu início à cantoria. Seus dedos se perdiam nas cordas do violão e suas cordas vocais extraviavam desvairadamente. Mais uma vez percebi que as modificações processadas pelos anos estão mais no outro que em nós. Perguntei se notara diferença em minha voz e ele respondeu, talvez para não me machucar, que eu estava em boa forma. Sebastião Benevides e Dona Maria mantinham a tradição de em todo Natal decorar a casa, comer peru assado e se dar ao prazer de beber vinho. A árvore de Natal era sagrada. Às vésperas do ano novo faziam questão de visitar antigos amigos, perdoar as ofensas recebidas e desejar um próspero ano novo a todos. Nesta época do ano eles surgem em meu pensamento, obrigando-me a recordações que julgava esquecidas.
Neste ano, eu estava em nossa chácara, rodeado por árvores insofismáveis e pássaros reais, com pena e cantar interminável. Para ali eu sempre ia quando queria me refugiar do som e da fúria urbana. O casal de sabiá fizera seu ninho sobre uma pilastra da varanda, a fêmea botara dois ovinhos e os chocava sem se incomodar com o meu vai e vem. Acompanhei tudo desde o início, quando o casal começou a construção do ninho. Engana-se quem pensa que só um zela pelas crias. Macho e fêmea dividem, compartilham a alegria da criação. Não param de trazer insetos para os famintos filhotes. Depois de criarem penas, vi-os treinando para o primeiro vôo. Batiam as asas sucessivamente para ver se podiam pular do ninho. Os pais observavam à distância quando eles decidiram ganhar vida própria, construir seus destinos. E quando se foram o casal iniciou um novo ciclo para trazer ao mundo mais sabiás.
Debruçado sobre o peitoril da janela percebi que a árvore próxima à entrada da casa estava coberta de flores. As trepadeiras, brincos de princesas e tuberjas enroscaram-se no tronco e subiram pelos galhos e coloriram a árvore com suas flores. A natureza cuidara de montar a mais bela árvore de Natal que eu já vira. E bem na minha porta.

Do livro: Crônicas do Cotidiano Popular – ed. do autor – 2006.