COISA ACONTECIDA

Ia eu pela correnteza da Barão do Rio Branco, centro de Fortaleza, distribuindo minhas pernas, à vontade. Ali pelo solzinho das três e tantas, fazia muito calor, um primor de tarde.

Bem à porta de uma livraria, que ficava à orelha esquerda do Romcy Magazine, hoje deitado de borco, o dedo de um desconhecido tocou-me no ombro, cutucando minhas antenas da atenção:

- Olha, lá, as complicações do verbo amar!

De fato, ainda sem notar quais eram as "complicações" que o sujeito me apontava, a poucos metros dali, no meio da calçada da Barão, um casal de jovens, tipo importação, ventindo pinta de gringos, talvez gente das Europas, osculava o maior beijaço de boca a boca que já flagrei em via pública.

Cena explícita de cinema, sem laivos de sem-vergonhice, tudo joguinho limpo para abismar pessoal provinciano, "mise-en-scène" alongado pelos olhares atônitos dos circunstantes e mais ainda esticado mercê do alto calor do conservadorismo de então, na Loira Desposada do Sol.

O idílio, não sei a quantos sorrisos hilariantes, deve ter escalado dunas e montanhas de seus dois ou três minutos.

Mas, ora, a coisa acontecida que narrada foi por este escriba canhestro não teria tido pilhéria nem significação alguma não fosse o inusitado da fita cinematográfica, algo colhido como "flash" de bom oportunismo pelo transeunte que me atiçou a testemunhar aquele ensaio degustativo.

É que, pela rua, no instante exato do colóquio romântico e amoroso, motivado por Cupido, a voz massuda de um locutor de propaganda itinerante anunciava, solenemente, num carro de som:

- Assista, logo mais, às 17h, na Praça do Ferreira, ao lançamento do livro do padre Antônio Vieira, intitulado "O verbo amar e suas complicações".

Ouvindo atento o anúncio publicitário, associado à oportunidade do competente parecer do anônimo que cruzava meu caminho, vi e compreendi na peça ao ar livre dos beijoqueiros a encenação necessária para a tarde de autógrafos. E, com a rubrica dos meus bigodes embaixo, achei graça, naquele momento espontâneo, porque sequer pegara fila, nem pagara ingresso.

Fort., 16/10/2008

Gomes da Silveira
Enviado por Gomes da Silveira em 16/10/2008
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