O vendedor ambulante e o coronel
O vendedor ambulante e o coronel
Cidade da Encruzilhadas das almas descalças, localizada lá onde o vento faz a curva em derrapada, gosta e se esquece de voltar. Neste lugar, dizem os que já foram lá, em sonho, é lugar bom de se morar: arborizado, com uma lagoa de água corrente e que ninguém sabe de onde vem nem para onde vai... Ovos de galinha, leite e carne não faltam, além de grãos de milhos e seus derivados. O povo vive alimentado pela lenda do cangaceiro que foi morto a tapa e enterrado com uma botija de ouro escondida no cós do jaleco. Parece que as almas do purgatório, em dias de sexta-feira treze e lua cheia, elas saem de suas tumbas e vêm pedir ajuda aos vivos da cidade.
Neste dias, as famílias se juntam, acendem suas velas e rezam juntas o santo ofício, mas com um detalhe, o credo tem que ser rezado pelo avesso, de frente para trás. As senhoras cachimbeiras e rezadeiras do lugar se revestem de folhas e galhos do pé de pião que segundo o ensinamento do lugar servem par açoitar as almas penadas, as sorrateiras que querem tirar proveito da situação e arrancam anéis, brincos, pulseiras, colares das moças virgem da cidade. Os homens, os incrédulos, abastecem-se de garrafas de pinga, pinga braba, pinga boa direta do alambique, se embriagam e tentam embriagar os espíritos zombeteiros que aparecem para matar a saudade da vida terrena. Entre uns e outros, dizem até que aparecem almas de padres, que em vida não valiam nada e passa a apontar as pessoas e contar os horrendos pecados, cada um dos mais cabeludos que ouvira ao longo do tempo como vigário do lugar.
O ruim da situação é que quem mais sofre são as beatas, as carolas, as ditas mulheres santas, piedosas, senhoras casadas, bem casadas, irmãs da caridade, distintas e honradas da cidade, na língua ferina da alma do vigário, são as que mais desmandam mal feitos e enfeites colocam nas cabeças dos maridos. Atazanam a vida dos padres e molestam os coroinhas, inventam vigília que acabam com orgias, umas devassas, é essa a palavras usadas pelas entidades. Algumas desmaiam, outras ficam estéricas, algumas enlouquecem e outras viram mula sem cabeças e desembestam a correr, correr mata a dentro e são encontradas mortas na água da lagoa. E os meninos afeminados, esse é outro problema, cada nome citado é um cinturão desafivelado e despachado na cintura dos coitados... Apanham como se fossem animais em sacrifício, expostos no tronco como se faziam antes com os escravos... De algumas almas já saem e passam a acusar os homens que com eles se deitaram, é um tremendo Deus nos acuda.
Fora esse dia, nada de novo aparece nesta pacata cidade: Tangimento de gado, procissão, trabalhos diários. O homem que abastece as casas de água puxado do chafariz em suas carroças, o abatedouro da cidade, a ferinha do mercado, a mercearia do velho Tota, o grupo escola que funciona no alpendre da zoadenta comadre Titica que além de professora é parteira, bordadeira, ministra da eucaristia e rezadeira do lugar. Adora uma confusão por nada.Briga porque faz vento quente, porque já, já vai chover e acabou de lavar uma trouxa grande de roupa; briga porque ensinou a lição e o menino não aprendeu, porque esqueceu o feijão no fogo e o marido acabou de chegar em casa todo fedorento a cachaça da noite passada.É uma figura essa comadre que de todos toma a benção. Tem um olho supercrítico, é olhar um donzela e dizer: Tá de bucho, prenha, foi bulida e não tenho nem medo de dizer.Vou cortar o coração da galinha e dizer se o bruguelo e macho ou fêmea .Um tiro e uma queda, nunca reza. Seu marido é o Mané trote, um trote em vida. Vive de querer se dar bem na vida as custa dos outros, é um estouro esse homem. Não trabalha, não faz nada além de compor alguns versos. Vive tentando a sorte jogando no bicho, mas nem os bichos os querem por perto. Nunca ganha, nunca acerta. É cismado com rastro de corno, tomou o coronel Zé Trindade como padrinho de casamento achando que havia de ter feito bom negócio. Qual nada, o padrinho nunca havia de ter visitado o afilhado, nem liberar algum trocado a custa de pagamento por trabalho prestado. O Mané, morto nas calças nunca mais havia procurado o padrinho a procura de nada, tinha cortado relações, mas a madrinha, isso é outra história. O homem havia colocado na cabeça de tentar desviar a tão respeitada beata Benvinda da Trindade, mulher respeitada e sovina, mais sovina que o próprio marido, o coronel Zé Trintade.
Até que um dia, chegou à cidade uma novidade, tal de vendedor ambulante, coisa nunca vista por lá. Era um homem engraçado, de alto falante na mão e com um carro colorido e cheiro de coisas que ninguém tinha visto. Vestia-se de roupas coloridas, usava cartola e tinha um cheiro esquisito...Por onde andava gritava...
- Fumo de rolo, linha nylon e baladeira...Gaiola, prego, martelo e furadeira... Chá mate, chá preto, capim santo, hortelã e cidreira. Remédio natural para dor de dente, febre alta, hepatite, dor no bucho e caganeira. Espirrela caída, bico de papagaio, unha encravada, esporão de galo e papeira... Venha, venham todos e aproveitem, aproveitem... Você compra um e só paga um. Fazenda de algodão, vidro de cheiro, espelho de mão e rendeira, elixir da boa sorte, da boa morte, vela de cravo e peneira. Pano de prato marcando segunda, terça, quarta, quinta e sexta-feira, rede, lençol, pano de Borjão bordado e trepadeira, a planta no jarro de pingüim pra enfeitar sua geladeira. Bico de crochê, imagem de nossa Senhora, livro das horas e benzedeira... Panela de barro, colher de pau, água benta, cordel e bandeira. Medalha milagrosa, espanta sogra e muriçoca - cachaça braba e da boa...Venham, venham todos e aproveitem a grande feira. Não é queima nem liquidação, são as super-ofertas do carrinho ambulante do seu João... E ai meu patrão, comprando alguma coisa hoje? Em que posso ser útil?
Coronel Zé Trindade: É, eu quero, quero sim. Agora que me lembrei que se o preço for bom, estou mesmo precisando comprar algumas coisas...
Vendedor: Pois não, estou a sua inteira disposição. Vendo tudo quase a preço de custo, baratim, baratim. Venda o seu peixe que depois eu venderei o meu. Aqui quem manda é o freguês. Se encontrar mais barato, eu devolvo o dinheiro. Pode dizer o que quer que depois eu falo se tenho. Atender bem é o meu lema.
Coronel Zé trindade: Deixe de gastar cuspe com tantas palavras... Deixe de tanto arrodeio, de tanto embromar, de tanta tagarelice, de conversa comprida, até parece que tomou água de chocalho, ande logo carretel e me ajude.
Vendedor: Minha intenção é agradar hoje, agora, depois, amanhã e sempre, agradar, agradar e agradar... Vender bem, mostrar os produtos, tudo do bom e do melhor, produtos de primeiríssima qualidade, pode conferir, faço questão em mostrar, pode conferir, afinal, olhar não paga, não paga... Por gentileza, qual é a sua graça, meu compadre?
Coronel Zé Trindade: Sou o coronel José Francisco Antônio da Trindade, mais conhecido como Coronel Zé Trindade. Carrego no nome o pai, o filho e o espírito santo, todos os três de uma só vez. Sou o homem que possui mais de mil cabeça de gado por toda essa redondeza.
Vendedor: Pra mais de cem cabeças de gado? Multiplicado por dois é chifre a dois contos e quinhentos... Pois sim senhor coronel... É só o senhor dizer o que quer comprar e eu loguinho, loguinho te ajudarei a escolher, sou mais rápido que piscar de olho e mais veloz que pedra de matar rolinha.
Coronel Zé Trindade: De tanto você falar pelos cotovelos, de tanto dizer asneira, cabra enrolado da peste, nem sei mais o se quero comprar.
Vendedor: Sei, sei, não quer mais nada...
Coronel Zé Trindade: É, desisti de comprar. Assim economizo meu suado dinheiro.
Vendedor: Pois bem...
Coronel Zé Trindade: Pois bem o quê, cabra?
Vendedor: Não, eu só tava aqui pensando no que o senhor poderia comprar.
Coronel Zé Trindade: Então diga de uma vez que não to gostando muito desse joguinho de gato e rato não. Isso pra mim não é coisa de homem muito macho, não. Se for eu digo.
Vendedor: Seria, pois um corte de fazenda, veja, para sua senhora? Tenho fazenda das boas, em cores, estampadas, com listras, xadrez, vinda de outras terras, material muito do bom.
Coronel Zé Trindade: Não, não é. Roupa ela tem demais, vestidos para vestir um por dia e não repetir. Juntando um no outro da pra ir à lua e voltar, é pano que não se acaba mais.
Vendedor: Um espelho, é um bonito espelho para que ela veja o quanto ainda é formosa.
Coronel Zé Trindade: É o que cabra? Repita se for macho. Se souber dançar xaxado no meio da bala, se quiser hoje mesmo habitar a vala-do-esquecimento com a boca cheia de formiga, passar para o andar de cima, abotoar o paletó de madeira, fale cabra...
Vendedor: Desculpa, coronel, eu não quis ofender...
Coronel Zé Trindade: mesmo não querendo já ofendeu... Agora vai ter que dizer, cabra... Como o senhor sabe da formosura da minha senhora? Isso é um despautério, uma falta de respeito, uma falta de vergonha. Que conversa descabida é essa?
Vendedor: Não senhor, meu compadre coronel, cruz em pé de pote. Longe de mim, longe de mim saber quem é sua senhora, longe de mim. Ai minha nossa senhora desatadora dos nós, onde foi que eu fui amarrar minha égua.
Coronel Zé Trindade: O que foi que você disse?
Vendedor: Nada, eu não disse nada. Só estava fazendo minha última oração.
Coronel Zé Trindade: É, porque o último cabra que se meteu a besta a olhar para minha senhora, dei-lhe uma peixerada no pé-do-bucho, torci, carreguei a faca até a boca do estômago, furei-lhe os olhos com meu anel, amarrei sua cabeça com meu chicote, arrastei-lhe pelas ruas até a igreja matriz...
Vendedor: Tudo isso!?
Coronel Zé Trindade: Tudo isso o quê, cabra?Foi pouco e só fiz pouco porque era tempo de quaresma e não queria pecar, pequei?
Vendedor: Não, não senhor, é claro que não. O senhor tava era coberto de razão. Se fosse eu teria feito o mesmo.
Coronel Zé Trindade: O que fiz foi defender minha honra. Sou o coronel Zé Trindade, autoridade máxima desse arraial.
Vendedor: Com certeza, e como era tempo de quaresma, faz de conta que o senhor matou um juda.
Coronel Zé Trindade: E foi mesmo. Esse cabra safado, cachorro, que não valia um peido de um gato, metido a besta, mequetrefe... É como carne de pá, que não é boa nem é má que se atreveu a olhar para minha senhora, era meu irmão.
Vendedor: Como?!
Coronel Zé Trindade: É isso mesmo. Saído da mesma carne mijada que eu. Minha mãe, minha pobre mãe, que Deus a tenha, fez das tripas coração para botar um desgraçado desse na vida, um fecha bodega, desordeiro, beberrão... Mas comigo é assim, escreveu não leu...
Vendedor: É analfabeto.
Coronel Zé Trindade: Como?!
Vendedor: É assim que se diz lá na capital. O homem que escreve, mas não ler é analfabeto.
Coronel Zé Trindade: Só que aqui é diferente, o cabra que escreve e não ler, o pau come, o pau não, a faca.
Vendedor: Sim, mas o que era mesmo que o senhor queria comprar?...
Pois é, pois é. Vá entender as coisas da vida. Depois da visita daquele vendedor na cidade de Encruzilhada das almas descalças aquele lugar nunca mais foi o mesmo. Depois do coronel apareceu a comadre Titica querendo fazer um bom negocinho na rede, o vendedor disse que se ela quisesse fazia um bom negocinho na rede e também nas colchas, negocinho tão bom que ela nem ia sentir, do jeito que ela quisesse, ela só ela escolher o produto e mostrar a oferta, mas essa história eu conto depois.