BARULHINHO NO OUVIDO

Zé Pinto e Lelê eram bons amigos e inseparáveis parceiros. Freqüentemente, dividiam a mesma mesa nos botequins da cidade de Santa Cruz (RN).

Passavam horas e horas a bebericar, sentados lado a lado, sem praticamente um dirigir a palavra ao outro. Silentes, cada qual com a sua própria garrafa de aguardente e com o seu próprio prato de tira-gosto, procuravam, sempre, os bares onde não havia radiola (fusão de rádio e vitrola), pois ambos não apreciavam a terceira das artes: a música.

Soa estranho o fato de um ser humano não gostar de música, porém os bons e fiéis parceiros deste causo não são os únicos, pois há sempre aqueles que parecem estar fora do compasso: os presidentes americanos Ulisses Grant e Theodore Roosevelt não gostavam de música. O guerrilheiro argentino Che Guevara amplia esta lista. O escritor russo Vladimir Nabocov registrou o seguinte: “A música me afeta como uma sucessão arbitrária de sons mais ou menos irritantes”.

Como o acaso acontece, às vezes, Zé Pinto e Lelê dividiam o mesmo espaço físico do botequim com aquela juventude santacruzense, inquieta e ao mesmo tempo romântica, dos anos 60 (Joca, Estevam, Zé Domingos, Hudson), que sempre se fazia acompanhar de um plangente (e muitas vezes barulhento) violão. No entanto, Zé Pinto e Lelê eram ecléticos, e como bons bebedores de aguardente nunca chegaram a criar qualquer tipo de constrangimento com a grande maioria dos mortais que são apreciadores da perfeita combinação das notas musicais que o músico italiano e monge beneditino da cidade de Arezzo, Guido Aretinus, presenteou à humanidade.

Certa vez, provocado sobre a sua relação com a música e sobre as emoções e sentimentos que esta arte desperta, Zé Pinto foi enfático: “Sinto apenas um barulhinho no ouvido”. Seu amigo Lelê endossou.