A PROSTITUTA (HIST. DO BIDÚ 6)
A CAMISA XADREZ
Um belo dia, Bidú convidou-me pela primeira vez a acompanhá-lo até a cidade:
- Raimundo! Pegue uma tara de sabão e um caco de telha e vá na cacimba tomar um banho. Se areia bem, até ficar lustroso, porque amanhã você vai pra feira comigo.
- Vou, Painho?
- Vai sim. E quem vai levar o burro é você.
- Eu sozinho?
- É.
E antes que eu pudesse respirar, ele já estava me ameaçando:
- É você sozinho, e se cair eu lhe mato, porque fio macho meu tem que ser ôme.
- Não, Painho; num vou cair não. E o senhor, Painho, num vai também?
- Vou.
- Mas, o Brioso num tá com o pé da ferradura, doente?
- Eu vou no burro da sua mãe. Ih! Painho, ela num vai deixar não! O Pássaro Preto é só dela. É burro de muié. E depois, naquele burro, ôme num munta. Ele num deixa ôme chegar perto, o senhor sabe disso!
- Isso que vamo ver. Corto ele na espora, arranco o bofe dele pelo vazio.
Deixei o meu pai na sala e sai correndo em busca dos apetrechos para tomar o banho.
Nossa! Aquela sexta-feira estava sendo mágica para mim. No dia seguinte, sábado, iria pra rua montado no Rubim. Ele era o meu burrinho, mas eu nunca havia ido para a cidade com ele; ele também quase nunca ia. Meu pai dizia que era um burro ruim, e quando empaca, nem o diabo fazia andar; além do mais, ele dava coices e mordia. O Rubim era assim mesmo, ele só gostava de mim. Certa feita estava na roça catando cavacos de caubi, e quando fui colocar os cavacos no caçuar (cesto de cipó), ele estava com raiva e me mordeu. Como meu braço era fininho e ele era meu amigo, ficou com dó e não apertou, depois olhou para mim como se dissesse: - Agradeça! Pois se eu quisesse tinha quebrado esse cambito.
Como estava dizendo, a sexta-feira estava me causando uma agonia danada, pois eu iria para a rua no meu burro e ainda no meio da cangalha. Era eu que ia comandar o burro. Dessa vez eu não ia chegar a cidade todo encaranguejado. Das outras vezes que tinha ido era dentro do panacum. Meu pai, às vezes, colocava até duas crianças em cada panakum, e quando chegava lá, puxava a gente pela asa e soltava no chão como se fôssemos frangos tronchos. Ali a gente ficava por algum tempo e depois levantava trôpego e saía cambeteando pelo passeio.
Dito e feito. Ao raiar do dia 23 de junho, véspera do dia de São João, o Bobô, tropeiro da fazenda, selou os animais, pondo os arreios no Pássaro Preto, um lindo burro sete palmos, alto e tão preto que brilhava, e a cangalha com os panakuns no Rubim, e rumamos para a cidade.
Naquela época, o dia 24 de junho era feriado nacional e se comemorava o dia de São João em grande estilo. A festa era, via de regra, na véspera, porque no dia seguinte podia-se dormir, porque ninguém trabalhava.
As mulheres começavam os preparativos da festança já no início do mês, confeccionando as roupas novas, preparando e estocando doces e licores, principalmente, licores de jenipapo e cacau; e os homens, no final de abril, tratavam de plantar roças de milho para a canjica, curau e o tradicional milho assado na fogueira. Naquela festa, quem pulasse a fogueira de mãos dadas, virava compadre e servia também para oficializar namoro.
Então chegando a cidade, estacionamos os burros na calçada da Cooperativa de Cacau e fomos fazer as comprar pra fazenda. Como aquela data era especial, as compras também o eram. Meu pai comprou primeiro o básico, depois as “coisas” de São João, inclusive muitos fogos. Aqui abro parênteses: acredito piamente que todo ignorante possui um “anjo guardião” de plantão, que evita os acidentes. Já pensou se aqueles fogos todos explodissem dentro dos panakuns do Rubim – bummmmmm!!! Era uma só! E lá ia, Raimundinho, panakum, cangalha e Rubim, tudo pro céu, bonitinho...
Retornando ao causo, o Bidu, depois de todas as compras, ainda bem que ele era um pouquinho responsável, disse:
- Fique aqui, tomando conta dos animais que eu vou ali e volto já.
Fiquei. Passou quase o dia inteiro e nada. Eu ali. Só eu e os burros. De vez em quando, chegava um ou outro, cutucava nos burros e ia embora. Ninguém falava comigo, parecia até que nem me via. Eu assustado, com cara de choro, ficava ainda mais assustado com aqueles homens feios, que mascavam fumo e cuspiam. Só sei que lá pelas tantas, no meio da tarde, não me agüentando mais de fome, saí pelo meio da feira e acompanhei com distância prudente um bando de homens que se dirigia para certa rua. Era uma rua bem movimentada, parecia que tinha procissão de “santo”. Como todos iam para lá, eu fui também. Quando embiquei na entrada da tal rua, percebi que era uma rua diferente, tinha muito barulho, muito homem e mulher e muita gente bêbada. Em todas as casas tinha festa e todo mundo podia entrar. Naquela rua todo mundo namorava, as mulheres beijavam os homens e depois iam para uma vilinha de quartos e se trancavam. Engraçado que naquela rua não tinha meninos, eu era o único. Fui andando assustado, até que numa daquelas casas de festas vi uma camisa xadrez rodando. Cheguei mais pertinho, encostei-me no batente da porta de entrada, apurei os olhos e conheci a camisa. Aquela era a camisa do meu pai. Continuei olhando e, por baixo da gente, pude ver que meu pai estava dentro daquela camisa e dançava todo animado com uma mulher. Fiquei olhando um bom tempo, e como ele não ligava pra mim, passei por baixo do povo, agarrei a camisa e puxei. Ele tentou se livrar, mas continuei agarrado. Quando olhou para baixo e me viu, empurrou a mulher que quase caiu e disse: Vai pra lá cão dos inferno! Me larga! Catou-me pelo braço, me levou até a calçada e disse:
- Sai daqui...! Isso num é lugar pra menino.
- Vou ficar com o senhor! Tô com muita fome. Minha barriga até dói! Nem água eu bebi hoje. E o senhor ainda me largou lá com os burros sozinho e eu estava com medo, pai.
- Tome aqui! - enfiou a mão no bolso e tirou um dinheiro e me deu - Vai comer lá na barraca do sarapatel. Vai, que daqui a pouco eu vou. Depois me espere na venda do Lafaiete. Vai logo.
Então eu fui. Quando estava saindo da tal rua, um baixinho careca me catou pelo braço e me segurou. Eu esperneei, mas não consegui escapar dele, e me perguntou:
- O que é que você tá fazendo aqui, menino?
Eu quase chorando, respondi:
- Vim atrás do meu pai.
- E quem é seu pai?
- É o seu Bidu.
- Ah! Você é filho do Bidu? - soou. Então suma, corra daqui, senão eu vou lhe prender e depois vou ter com seu pai, porque na “rua do Cacau” não é lugar de menino.
Futuramente vim saber que o tal baixinho era o seu Enock, comissário de menores que achava que era autoridade. Ele era mesmo um baixinho nojento. Quando fui morar na cidade, gostava de passar pela “rua do Cacau”, pois suas luzes e “mariposas” me encantavam. Então ele se tornou o meu inimigo número um.
Soltei-me do senhor Enock, apavorado, e fui comprar algo para matar a fome. Como eu gostava mesmo era de requeijão, queijo baiano, na primeira barraca que cheguei pedi logo o maior pedaço. O cara me perguntou:
- Você tem dinheiro?
- Tenho sim, senhor!
- Bom.
Quando mostrei a nota pra ele, queria me bater porque dizia que menino não podia ter um dinheiro daquele tamanho, e que eu havia roubado de alguém. Ai eu gritei e disse que foi meu pai quem havia me dado. De novo tive que falar quem era meu pai. Então, ele me serviu. Comi requeijão até não agüentar mais. Depois comi todo tipo de cocada que tinha. Já quase empanzinado, fui até a venda do senhor Lafayete e fiquei esperando pelo meu pai sentado no passeio. Lá pelas tantas, ele apareceu meio, meio não, três quartos embriagado. E num misto de apressado e atrapalhado, tratou logo de me colocar no lombo do Rubim, e antes de iniciarmos a viagem de retorno me ameaçou:
- Se contar pra sua mãe, não carrego você mais para lugar nenhum, ainda lhe dou uma surra que vai sair todo o couro da costela! - complementando, perguntou: cadê o troco?
Meti a mão no bolso e dei-lhe o que sobrou do dinheiro. Então, ele berrou:
- Você tá doido? Gastou cem contos de réis?
- Não. Eu só gastei o que comi!
- Pelo amor de Deus! Aquilo era muito dinheiro! Dava pra fazer a feira de um trabalhador!
Fiquei calado e fomos embora para casa. Meu Deus, não sei como aquelas bombas e foguetes não espocaram no caçuar, porque ele meteu as esporas no Pássaro Preto e rumamos pra casa a todo galope.
Quando chegamos a casa, a fogueira já estava montada, a frente da fazenda, cheia de bandeirolas de papel crepom, e o pau de sebo, já com o pote amarrado e tudo. Os meninos e a minha mãe já tinham tomado banho e estavam todos arrumadinhos. Ele procedeu como das vezes anteriores. Ao passar a porteira para dentro da sede da fazenda, meteu as esporas no pobre Pássaro Preto e chegou riscando na porta de casa, enfiando as esporas e depois freando pelas bridas. Como a minha mãe estava de cara feia e ele alterado pela bebida e contagiado pela sua felicidade com a “quenga” lá da Rua do Cacau, ficou judiando a montaria por um bom tempo. Arrancou seu Smith West, cano longo, cabo de madre-pérola, gritando e atirando para cima:
- Viva São João! – e tome tiros até acabarem as balas. Depois pegou os fogos e começou a sua festa particular. Acendeu uma tal de cobrinha, que foi parar embaixo da saia da minha mãe. Quase que as festanças de São João acabaram ali mesmo. Assim era o Bidu: alegre, divertido, bom parceiro, irresponsável ponderado, um grande pai e amigo e tinha um imenso medo de assombração.