A CAIXA QUE FALAVA (HIST. DO BIDÚ 5)

O RÁDIO E O DVD (A HISTÓRIA SE REPETE!)

Bidu, certa feita, vendeu uma safra de cacau no birro, negociada ainda no pé, e com o dinheiro no bolso dirigiu-se até a venda do Sr. Osmundo e comprou um rádio.

Naquele sábado, chegou a casa riscando o Brioso, seu lindo cavalo branco Manga-larga, para todos os lados. Trazia na cabeça da sela um volumoso objeto. Esporeando o animal, corria para lá e para cá gritando: _Venha vê, minha veia! Venha vê, minha veia! Venha! Venha logo! Venha vê o que trouxe pra você!_ Pulou do cavalo e embocou para dentro de casa completamente transtornado de felicidade. No meio da sala, depositou com cuidados cristalinos o imenso pacote quadrado, envolto num saco de farinha de trigo, e já foi logo abrindo. Naquele momento, ele era o centro do universo e uma pequena aglomeração se formou ao seu redor, todos os filhos, a mulher e seus vinte e dois cachorros e do lado de fora todos os trabalhadores e seus familiares também haviam acorrido para lá, tamanha foi à confusão que ele desencadeou na chegada à fazenda. Curiosos estávamos e mais ficávamos enquanto ele ia desembrulhando o pacotão. Ao fim dessa tarefa nervosa, surge no meio da linda sala da minha mãe. E como era linda aquela sala! Despojada de qualquer ilusão materialista. A mobília se restringia somente a dois bancos grandes de madeira e um altar de santos, mas o que a tornava linda era a paz proporcionada pelo canto dos pássaros, que vinha de fora, vários e de todos os tipos, e a limpeza daquele piso cimentado, sempre brilhante e ornado pelo Veludo Preto, um belo cachorro preguiçoso e de que meu pai não gostava, porque ele não ia com os outros caçar. Ele era o nosso andador e fiel guardião da casa. Todos os meus irmãos, inclusive eu, aprendemos a dar os primeiros passos através do velho Veludo Preto. Voltando ao pacotão, quando aquela coisa bonita e estranha surgiu no meio da casa, foi um assombro só. Era uma grande e bela caixa de madeira envernizada, cheia de botões e outros enfeites. Ao ser ligada, acendeu a cara e danou a gritar. O som que emitia era parecido com o que vinha da mata encantada. Com certeza dentro daquela caixa tinha todo tipo de bicho e de seres encantados, pois imitava grilos, caburés, ratos sendo comidos por cobra e até trovoada. Com aquele panavueiro todo não teve quem ficasse na sala, todo mundo correu, inclusive os trabalhadores que estavam a espreita lá fora. João Dionísio, empregado mais íntimo da casa, estava no último degrau da escada circular e quando a caixa espocou, esqueceu que não estava no nível do terreiro, virou e correu. O coitado se lascou todinho no arame farpado da cerca do jardim de margaridas de minha mãe. Nossa! Foi uma tragédia! Meu pai ainda gritou de lá: Bem feito, fio duma égua! Quem mandou oiá o que num é da conta!

Passado o susto, meu pai foi pôr em prática o que tinha aprendido com o vendedor de rádios. Começou a mexer nos botões, um aqui, outro acolá e, de repente, um homem danou-se a falar. Ele dizia que estava numa tal de Barriga verde. Ele era muito esquisito, dava pra ver que ele falava correndo, tinha hora que falava bem em cima da gente e logo depois sumia, parecendo que estava falando lá do céu e desaparecia. Quando isso acontecia a gente só ouvia o barulho de Deus, não entendia nada, era aquela chiadeira danada. Lá em casa ninguém entendia o que Deus dizia, ainda bem que Deus era rápido assim como o homem do rádio, dava pra perceber que eles se encontravam no meio do céu, pois, quando o homem estava indo embora, Deus estava vindo com seu barulhão. Daí a pouco era Deus que ia e o homem vinha. A gente gostava mais do homem, porque a gente entendia quase tudo o que ele dizia, quanto a Deus, não. Ele só reclamava, com a sua voz de trovão. Nossa! Aquela caixa mágica estava deixando todo mundo doido. Lá na fazenda o que a gente mais tinha medo era de corisco, mas o rádio era pior que o corisco. O corisco quando esta vindo avisava antes, o anjo pintava o céu todinho de preto. Já o anjo do rádio não avisava não, quando você menos esperava o corisco já estava dentro de casa, ali bem pertinho de você, era tchhhhhaaaa!!! Aquela caixinha era danada. Era somente o ôme ir embora que ela já mandava os coriscos e ainda apitava, fazia – tuiiiimmmm! tuiiiimmmm! tuiiiimmmm! A caixinha era tão mágica que fez meus irmãos chorarem de medo. Eu acho que eu também chorei. Mas o engraçado mesmo era que quando se pensava que o homem tinha ido embora de vez, ele voltava devagarzinho; vinha falando lá de longe até chegar bem pertinho, aí meu pai vibrava de contentamento e dizia para a nossa mãe: Ta vendo, véia? Ninguém tem um desse!!! Só nóis!!!. Meu pai estava tão contente com sua caixinha falante que se esqueceu de tirar a cela do coitado do Brioso.

A notícia do rádio correu pela redondeza e todo domingo a casa se enchia de gente para escutar Luiz Gonzaga cantar e tocar fole. A tal da Barriga verde que o homem falava, nada mais era que a Rádio Mayrink Veiga, do Rio de Janeiro. Lá na roça, só pegava ela e a Nacional, também do Rio.

Certo dia, enquanto ele estava na labuta lá pras bandas da Tiúba, a Áurea, curiosa como ela mesma, praticou uma tremenda traquinagem. Cutucou o rádio que ficava escondido e trancado no quarto onde papai e mamãe dormiam. À noite, quando ele foi escutar Luiz Gonzaga, o rádio não falava, só chiava. Ele labutou de todas as formas, com o máximo de cuidado possível, e nada. Então foi até a porta da sala e sentado no degrau da escada, olhando para o céu, danou a chorar. Aquilo cortou o coração de minha mãe que correu em seu auxílio, e como sempre fazia, sentou-se na escada também, e o colocou deitado com a cabeça em seu colo, chorando também. Todos corremos para lá e, agarrados, foi um berreiro só! Lembro que minha mãe dizia:

__Não fique assim não, meu véio! Você compra outro!

_Mas comprar como, minha véia? Esse aí é a safra que ainda vou colher! Acho que os meninos vão até passar fome!

Nesse vai e vem, minha mãe teve uma idéia:

_ Lá na cidade tem um ôme que cuncerta rádio. Amanhã, você sela o Brioso e vai lá. É mais barato que comprar outra caixa falante.

Dito e feito! No dia seguinte, bem cedinho, ele embalou o rádio, pôs dentro de um saco branco de pano e com todo cuidado montou em seu cavalo, segurando o rádio como se fosse sua vida e rumou a todo galope para a cidade. Chegando, foi direto ao senhor Zé do rádio. Ele se apresentou e derramou todo o seu drama para o homem. O técnico, após ouvir sua história, passou a examinar o aparelho. Mexeu nos botões da frente e depois no fundo do rádio, que imediatamente danou a falar. Meu pai então gritou:

- O senhor é bom mermo nisso! Meu bicho vortou a conversar!

O homem olhou pra ele e sorriu. Então veio a pergunta ansiosa:

- Quanto lhe devo e o que é que ele tinha?

O Sr. Zé do rádio, olhando para meu pai, simplesmente respondeu:

-Nada!

Ele, sem entender respondeu:

_Como assim? Quer dizer que esse fio do cabrunco me fez chorar e correr até aqui só porque estava com preguiça de conversar?

_ Não, seu Bidu! - Alguém deve ter mexido nessa chavinha aqui ó...! E mostrou para meu pai a chave conversora de pilha para eletricidade.

_ Foi isso?

_ Foi, alguém mexeu em seu rádio.

_ Ah! Quando chegar em casa vou matar um moleque daqueles. E quanto é seu trabalho?

_ Imagina, seu Bidu! Não é nada não.

_ Então... que todos os santos do céu que lhe guarde.

Montou no seu cavalo e partiu em disparada para casa. Ficou tão contente com os acontecimentos que se esqueceu de matar os meninos. Só muito tempo depois foi que se lembrou da história que o homem havia lhe contado a respeito da tal chave. Então, reuniu todos nós e nos ameaçou. De repente, ouviu-se um choro doído. Era Áurea, que aos berros dizia:

_ Não me mata não, pelo amor de Deus, meu pai! Foi sem querer! Eu só queria escutar o ôme!

Ele com aquele coração maravilhoso simplesmente disse:

_ Venha cá, minha fia, venha!

Ela foi, ele a pôs no colo e pronto, acabou toda a rusga.

Como disse acima, toda história se repete.

Eu, Raimundo, a reminiscência do Bidu, seu herdeiro legítimo, dirigi-me a uma loja de departamento e adquiri um lindo aparelho de DVD, com múltiplas funções; além de assistir aos filmes, ainda ouço o Gonzagão e o Gonzaguinha, o bicho é danado de bom! Fala e mostra. Ainda no final, conta detalhe do que falou.

Como as histórias se repetem, assim como Bidu, eu também tenho certo medo do bicho! Aquele montão de botões, todo cheio de polodoro, de certa forma me afasta um pouco dele, tanto é verdade que na hora de assistir a um filme é o Tatá ou a Malía, Otávio Henrique e Maria Clara, meus netos filhos, de sete e cinco anos, respectivamente, quem calibra o danado na justa medida. Como estudo e trabalho, quase não me resta tempo para desfrutar das preciosas qualidades do instrumento de desejo moderno. Minha faculdade havia recomendado o filme “A Menina de Ouro”, que seria debatido em sala de aula. Corri até a locadora da minha amiga Wilminha e peguei o CD, quando cheguei a casa, fui logo chamando o Tatá para colocá-lo no DVD. Ele veio meio assim... então lhe perguntei:

_ O que foi? Não quer ajudar o vô?

_ Não, vô, sabe... é que ele não tá legal.

_ Não tá legal como?

_ É... ele não tá legal. Tá só falando.

_ Só falando como?

_ Não sei, vô...

_ Ponha aí o disco. Vamos ver.

Ele pôs o CD e nada. Realmente só estava falando, estava igual ao rádio de meu pai, fazia barulho mas o ôme não estava aparecendo, não. Aí foi que a história realmente se repetiu. Fiquei muito bravo com a vô, minha esposa. Disse que ela não cuidava das coisas (coitada... agora estou com vergonha) e coisa e tal, e me atirei de cara amarrada num sofá e fiquei resmungando por um bom tempo.

Como era um sábado, parece que as coisas acontecem sempre aos sábados na minha vida, almocei, descansei um pouco e depois fui para meu Centro Espírita na cidade de Guarulhos. Esqueci-me do episódio e do DVD por um bom tempo. Ele ficou lá embaixo da televisão esquecido. Até que certo dia, sentado no mesmo sofá, olhei para o rack e vendo o vídeo, resolvi levá-lo ao conserto. Peguei o manual e escolhi o técnico mais próximo da minha casa, Metrô Tucuruvi. Liguei, obtive informações e naquele mesmo momento decidi que iria solucionar o causo e fui. Lá chegando, meio esbaforido como Bidu, fui atendido não pelo Zé do rádio, mas por uma simpática e idosa nissei. Passei-lhe o aparelho e ela tratou de chamar o técnico, que na realidade era uma técnica, uma linda e jovem japonesinha, que sem delonga foi logo pegando o aparelho e ligando num monitor, conectou os cabos, pegou um CD, um controle remoto, deu algumas acionadas nos botões do controle, desconectou o vídeo e virando para mim disse:

_ Pronto!

Eu, atônito, respondi:

_ Pronto o quê?

Ela disse-me:

_ Já está pronto. Pode levar.

_ Posso levar?

_ Pode, sim. O aparelho não está com defeito, alguém mexeu nesse botão e ele travou.

_ Mexeu no botão?

_ É... este aqui, ó!

Ela me mostrou no controle um pequeno botão onde estava escrito out – alguma coisa. Eu respirei e me lembrei dessa história do Bidu. Realmente a coisa se repete, ou não?.

RAYSAN DE SOUZA
Enviado por RAYSAN DE SOUZA em 06/10/2008
Reeditado em 06/10/2008
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