Dúvida atroz

Chico e Vasinguetão eram amigos inseparáveis. Eram mais que amigos, pois duplamente compadres. Chico batizou Filomeno, o caçula de Vasinguetão e este jogou água na moleira de Rita, primogênita do Chico.

As mulheres também eram muito amigas. Marlene, a mulher de Chico, não se separava da Lourdinha, “patroa” de Vasinguetão. Tudo que uma fazia, lembrava-se logo da outra. Biscoito espremido, broa de fubá, beiju de goma, bolo de puba, doce de mamão com rapadura e outras guloseimas passeavam de uma casa pra outra. No mesmo prato que vinha um agrado, a comadre que o recebia não deixava por menos. Atulhava-o de novos agrados, antes de devolvê-lo.

Naquela pequena cidade norte-mineira onde viviam, havia até quem colocasse “reparo” naquela amizade dos dois casais. Falavam que havia carne debaixo daquele angu. Outros, mais complacentes, saíam em defesa daqueles amigos tão íntimos, mas que a dúvida pairava sobre aqueles relacionamentos pouco usuais, isso era verdade.

A dúvida maior era sobre os quitutes que a Marlene, esposa do Chico, fazia para o compadre Vasinguetão. As guloseimas que mandava eram sempre para agradar o compadre, registrado com aquele nome estrangeiro, difícil de ler: Washington.

A pessoa mais letrada do lugar, num baianeiro de fazer gosto, disse ao pai do Washington que a pronúncia correta era Vasinguetão e pronto. Pegou.

No Banco do Brasil, onde fazia sua carteira de milho, todo ano era a mesma coisa. Tinha sempre de ensinar ao novo funcionário “a leitura” do seu nome:

- “Va – sin – guê – tão. Igualzim – sem tirá nem pô uma letra – o nome dum presidente do Estadunido...” – dizia com certa empáfia o matuto.

Quando o funcionário pedia-lhe um documento para certificar-se de como se escrevia, e via tratar-se de Washington, caía na gargalhada, diante de um Vasinguetão atônito...

Pois diante daqueles agrados e de ter sido flagrado pelo padeiro, altas horas, saindo da casa da comadre, quando todos sabiam que Chico viajava para vender uma boiada, a situação começou a ficar preta para o Vasinguetão.

Não demorou muito e o Chico, ao retornar da viagem, ficou sabendo de tudo. O compadre estava tendo um caso com a sua querida Marlene. Em princípio não acreditou, mas como eram muitos os amigos que lhe alertavam sobre aquele caso amoroso, Chico resolveu averiguar a situação com bastante cuidado, mesmo porque poderia ser fofoca de pessoas desocupadas.

Chico matutou uma semana, buscando uma maneira discreta de confirmar o que todos já sabiam. E foi num antigo brocardo latino que buscou inspiração: in vino veritas. Mas é claro que Chico não conhecia a frase latina. Sabia apenas que os bêbados normalmente falam o que sóbrios não falariam.

Num sábado pela manhã, passou na casa do compadre Vasinguetão e o convidou para tomar “um golo” no boteco do Joaquim da Lenha, porque lá havia um tira-gosto de feijoada que era o melhor da cidade. Ele aceitou de pronto o convite e para o boteco se dirigiu, de carona com o compadre Chico. Chegaram cedo lá, por volta das 10 horas. Pediram uma dose de cachaça, como abrideira, e depois começaram a tomar cerveja, acompanhado sempre por um tira-gosto de feijoada. Mas Chico sempre alertava: “Gosto só de carne muciça, Joaquim. Capricha aí...Nada de orêia, rabim e fucim...”

Quando o álcool começou a fazer efeito, Chico simulou estar triste. O compadre quis logo saber o motivo daquela tristeza repentina.

- Né nada não, cumpade. É um pobreminha com a Mailene.

- O que tá acunteceno cum ela, cumpade? – indagou preocupado Vasinguetão.

- Doença séria, cumpade. Doença séria. O dotô dizquié contajosa...pegajosa. E o pió é qui ela sabia, num falô nada, e nessa artura já tô cuntaminado tombém... – resignou-se Chico.

- Mas qui doença disgramada é essa, cumpade. Disimbucha logo, siô! – insistiu o Dom Juan do brejo.

- É lepra, cumpade. É lepra... A tal da lazeira, male-de-são-lázzro – disse Chico, mirando-se nos olhos do compadre.

Ao ouvir o nome daquela doença, Vasinguetão quase engasga... Uma lágrima escorreu sobre sua pele queimada. Depois, refeito do susto, balançando a cabeça em sinal de reprovação, disse algo que tirou qualquer dúvida do Chico:

- Mailene num divia tê feito isso cum nóis, não, cumpade...

Chico não brigou com o compadre. Arrumou sua mala, sem que ninguém soubesse e, com o dinheiro da venda da boiada, foi embora para local incerto e não sabido...

Itamaury Teles
Enviado por Itamaury Teles em 03/10/2008
Código do texto: T1210392
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