Dívidas e Amor.
Mal havia terminado de colocar o bolo de fubá sobre a mesa, Sampaio invadiu a cozinha estressado, com cara de ofendido que pensei inconformada, lá se foi a paz do meu café! _Fala logo, homem... Que bicho te mordeu? a falar.
“Não foi bicho não, rosinha, foi cobra”! Falou indignado chacoalhando as folhas de seda nas mãos. Leia você mesma!
Era uma carta longa e perfumada de sua tia Emilia. Enquanto lia, em silêncio, degustando meu sagrado café Sampaio relembrava os fatos… Falou de quando esteve aqui, oito meses atrás, bem vestida, cabelos escovados, cheirando a perfume francês, com a desculpa de conseguir um empréstimo para quitar o carro novo que comprara numa oportunidade excelente. verdade seja dita, Sampaio lutou para não emprestar mas ela estava convicta de que ele cederia. Disse que pegaria dez mil e que pagaria em doze parcelas de mil. As duas últimas ficam como juros, afinal, o dinheiro desvaloriza. Não havia amizade e consideração naquela visita inesperada apenas, o interesse em gastar o dinheiro que eu vinha guardando segredo por anos e, que por azar, o primo Luca, descobriu e espalhou a notícia. Filho de uma égua! Olhei para Sampaio, indignada, afinal a mãe de Lucas havia falecido a pouco tempo.
A carta da tia Emília estava cheia de palavras cuidadosas que imagino a humilhação que foi escrevê-la.
Sampaio chamou a atenção para o trecho que ela o chamava de, “sobrinho amado”
Deus, quanta demagogia numa carta desse tamanho. – exclamou irritado. Só não entendo porque não telefonou, seria mais sensato ouvi-la falar. Concordo. Poderia se extraviar pelo caminho e a merda seria pior. Mas Sampaio enfatizava que a tia rica não daria a palmatória tão fácil. A carta foi para confessar que o filho dela, o tal engenheiro do pescoço empinado, estava na rua da amargura dependendo de ajuda. E, que, por essa razão, não poderia honrar com as duas últimas cotas do empréstimo que lhe fez, prometendo entrar em contato assim que as coisas melhorassem. Me deu dó saber da situação. É duro suportar a virada do destino assim, tão bruscamente. Não podemos negar que eram gentis conosco e que sempre que passavam as férias fora do país nos mandavam cartões postal. Sampaio, congelou ao ouvir minhas ponderações. Desculpa, Sampaio, mas ninguém está livre de um momento assim.
_ Sim... A empresa dos outros vai a “bancarrota” e eu vou arcar com os prejuízos?! Admiro-me muito, ouvir você dizer isto,
Rosinha! Defender este povo mesquinho e que sempre te esnobou! Penso que no fundo, você é igual, pois sempre que pode, me passa a perna e me deixa no prejuízo! Esbravejou, e num golpe traiçoeiro, foi lá, nas profundezas dos guardados resgatar seus navios piratas mas, Sampaio é assim, desde sempre, coleciona trágicos episódios, afrontas... Qualquer inspiração, vai lá, no fundo do baú e revive seus fantasmas! Sempre enalteço que sua mente é uma agenda impecavelmente infinita. Por exemplo: Vive dizendo que me ama, mas não esquece o dezembro em que fui viajar com as crianças e o deixei sozinho por dez dias. Quem ama de verdade, não abandona o outro, falou-me na época e passou meses remoendo a dor... E não teve jeito, tive de ficar ali, ouvindo-o degustar com prazer as mágoas do passado, com dia, data e hora. Lamentou quase chorando que pra sua família ele não passava de um mero sargento do exército, quando deveria ter estudado pra ser mais. Enquanto que seu primo, era aclamado como, o engenheiro mais inteligente da família! - Ironizou sorrindo apático, mirando o nada como quem pesca na memória algo importante.
Sua memória é péssima, Rosinha. Ele rejeitou seu café, aqui, na nossa frente. fez cara de nojo… E você cheia de pena desse povo caloteiro. Começou a lista… Falou do tio Bento que morreu lhe devendo o smoke do casamento da filha, do primo Olavo, que deixou uma dívida enorme no bar da esquina quando veio nos visitar…
Pensei abatida que, pela lógica cronológica de todos seus devedores, ainda viria pro meu café: o irmão de Gilda, que num domingo fatídico, sem intenção, afundou o para lama do seu carro novo, os quatro anos de cursinhos pré-vestibulares para João Pedro, o aparelho nos dentes de Mariana, a viagem de férias pra Minas... Cortei uma fatia do bolo e permaneci calada, deixando-o iludido que lhe ouvia. A todos jurou perdão. Perdão esquisito, que vira e mexe, perde o valor... No fundo os problemas não nos procuram, nós é que vamos buscá-los, e no íntimo de cada ser, possuí-los é prazer. Percebi naquele discurso enfatuado, que fazia liberando gestos, uma nítida vaidade inflada, camuflada por uma retórica forjada a fogo frio. Finge dor, quando na verdade, goza ao saber que a parentela rica e esnobe, lhe são devedores. E o faz com tanto empenho, sua encenação, que a defesa fica indubitável!
Soberbo quanto ele, somente meu pai. Pensei comigo mesma, lembrando o homem arrogante que viveu pra mostrar pros filhos o valor de cada coisa comprada: móveis, comida, roupas, sapatos... De tudo dava conta, transmitindo naquele teatro, a grande dificuldade que foi adquiri-las. Entendíamos que tudo era somente para cumprir o exercício de educar, por isso, nos cobrava valor e preservação em tudo.
Hoje, mais madura, entendo que o que fazia era mostrar do que era capaz de comprar, produzir... A imagem que tenho agora de meu pai e, comparando com a de Sampaio, faz tudo parecer irrisório! Orgulho também, é uma forma de vaidade.
Na alma gloriosa de Sampaio havia grande dificuldade em exercer o perdão e prosseguir em paz, pois, no fundo, meu marido sempre foi um notável colecionador de pedras, mas o mundo está infestado de pessoas assim: que de tudo faz drama! Tem gente que te abraça, após um deslize dizendo que está tudo ok, mas na realidade, mente e mantém o fogo da deslize aceso nas cinzas, a mercê de qualquer vento que passando, incendeie. Mas, o vento que incendeia também apaga. Falei comigo mesma enquanto recolhia a louça do café. Sampaio prosseguia com a sua interminável lista de devedores e eu navegava no mar dos pensamentos, sabendo que bastaria um deslize qualquer pra fazer acontecer o caos!
Pergunto então, onde se esconde o amor enquanto o perdão não chega para libertá-lo? Mirei Sampaio distante de minhas divagações, relendo a carta indignado. Gostaria de ouvir o amor se manifestar a respeito... Falo do amor do canto lírico e tão lindamente poetizado nas linhas bíblicas: “Um amor que tudo sofre, supera e perdoa”.
Vou buscar o jornal. Falou asperamente me despertando dos pensamentos.
Vá sim, meu querido, e veja se desencanta toda essa revolta pelo caminho e volte renovado para experimentar o bolo que te fiz com tanto carinho! – ele então, me sorriu, me pediu perdão, concordou e partiu.
Marisa Rosa Cabral.
Marisa Rosa Cabral.