O BOI E O PÉ-DE-FEIJÃO (HIST. DO BIDÚ 8)
Lá pelos idos de 1951/1954, uma estiagem medonha assolou todo o sul do Estado da Bahia - Brasil.
A seca devastou tudo.
As lavouras não vingavam, as plantas não nasciam. Os animais morriam de fome e de sede, e as humanas criaturas passaram por tantas dificuldades motivadas pela imensa fome que eram somente pele e osso. Naquele mato seco, os únicos animais que restaram foram os calangos, que se transformaram em prato predileto das criaturas em tempo de expiação.
O chefe calango, vendo que o caldo entornara de vez e ainda obedecendo às determinações do “deus calango”, tratou logo de reunir os sobreviventes e sumiram do mapa.
Ah, meus queridos amigos! Quando Bidu ficou sabendo da decisão do “Calango chefe”, foi à loucura, gritou, espraguejou até não agüentar mais, gastando a última reserva de suas escassas energias e por fim exclamou: Agora se danou tudo! Como é que vou viver nesse mundaréu de meu Deus, sem nadica de nada, onde o que campeia é a miséria, a peste, a solidão e o desespero?
Num tem mais cacau, num tem feijão, num tem nada!
A mandioca da farinha nem se fala! Até a maniba, pedaço do tronco da árvore da mandioca, murchou. Num sobrou nada mesmo, os teiús, calangos gigantes do tamanho de um jacaré médio, sumiram; os ratos de brejo também.
Colocando as mãos na cintura e depois tirando o velho chapéu da cabeça e batendo na perna, gritava e chorava. Mas que desgraceira! Os calanguinhos também foram, só restava essa! Como é uma peste dos inferno dessa! O que é que vou comer agora?
E os meus fios?
A véia nem se fala, tá só o caco!
Ai! Meu Deus!
Num faz uma miséria dessa não! Nesse cabrunco só restou capeba, e capeba num serve não! Nem os bicho come. Um ôme num pode viver assim! Todo mundo na terra tem direito a um prato de feijão e um pedaço de carne.
Quando Deus veio fazer a Terra e foi embora, Ele deixou um boi amarrado num pé de feijão que era pra nunca fartá comida pra ninguém nesse mundão! Como é que agora tá todo mundo morrendo sem o de comer. Já não tem cacau, nem banana, nem jaca, nem aipim, água nem se fala; os bichos já morreram de fome e sede; os calangos foram embora, os Sagüis também. Esses tinham que ir embora mesmo. Foi bom ter ido, porque eu tinha pena de matar os bichos pra comer. Antes de dá uma paulada na cabeça, eles gritavam e choravam, pareciam criancinhas pretinhas. Toda vez era a mesma história, eles gritavam e choravam e eu também. Morria de dó deles. Eles oiava pra mim, chorando pra não morrê, mas num tinha jeito não. Eu num óiava na cara não; parecia que era um fio meu que tava indo pra panela, mas fazer o que né? Eles tinham que morrê pra eu num morrê também. Quando eu pegava o bichinho lá no mato e botava no embornal, ele gritava e chorava. Eu também chorava no caminho; eu até podia matar lá mesmo, mas eu num gostava de fazer isso. O espírito da mata ficava triste, então, eu voltava de cabeça baixa até chegar a casa pra poder matar o bicho e comer.
Acho que aquele Deus bonzinho que veio aqui e foi embora, foi pra muito longe... num tá vendo a gente aqui nesse miserê todo. Tudo lascado! O outro deus que ele deixou tomando conta da gente, esse num foi embora não! Esse se bandeou pros lados do diabo, porque isso que Ele está fazendo é coisa do diabo. Onde já se viu gostar tanto de castigar assim? Coisa de Deus num é! Deus num castiga. Deus dá é conseio. Disso eu sei. Quando o cabra tá muito danado aqui embaixo, Deus chama, senta no colo e depois dá um castiguinho, tira um fio dele e leva embora pra ele ficar chorando e pronto. Ele pode até tirar um pouco das coisas, mas Ele num tira tudo. O Deus - Bom Jesus da Lapa -, pai de Padinho Padre Cícero, num faz essas mardades. Essas presepadas é coisa desse deus aí; esse deusinho que tá aqui tira tudo e tira pelos avessos. Pode ver que ele primeiro mandou um sol na moleira, secou tudinho, a água foi embora. Então ele matou os bichos e secou os matos, pra assim ir matando a gente devagarzinho, assim ó, igual piolho, fazia o gesto esfregando as unhas dos dois polegares. Ele gosta é de castigar... também não sei por quê. Porque ninguém fez nada pra ele! A gente não conhece ele. É que ele é ruim mesmo, ele é fio do capeta.
E foi assim, que certa noite, sentado no mesmo batente da escada da porta, olhando para as estrelas do céu, batendo seu velho chapéu dobrado nos joelhos como era seu hábito quando estava muito preocupado, fazia isso e dizia: êta peste! Agora desgramou tudo! De repente, danou-se a conversar. Nós que estávamos por perto, sempre por perto, paramos o quase nada que fazíamos e começamos a prestar atenção nele e depois no que ele dizia. É lógico que não entendíamos nada daquele converseiro todo que ele estava fazendo com Deus. Éramos pequeninos e a fome tinha derretido todo o nosso miolo, já não tínhamos forças para escutar. Mas ele estava conversando com Deus, ah, isso ele estava! Porque ele olhava pra cima e gesticulava, falava e respondia...
Agora eu tenho certeza que ele realmente falava com Deus. Era uma conversa parecida com aquela da crença Omolocô, onde Exu e Pombagira foram ter com Zâmbi para acertar os detalhes do nosso desenvolvimento aqui na terra. A conversa de Exu com Zâmbi também tinha começado assim, áspera, nervosa e conflitante.
Quando Exu e Pombagira foram instados a se pronunciarem, não se fizeram de rogados e foram logo reclamando. Assim como Bidu, diziam que não era inteligente manter os espíritos humanos aqui na Terra naquelas condições e contaram que era necessário que os espíritos que na terra vagavam sem forma e sem se conhecerem, como simples espirais de fumaça, deveriam espiar seus débitos, materializados, já que não se conheciam e nem sabiam os resultados dos seus castigos. Inteligentemente, sugeriram que cada um dos Espíritos da Natureza, isto é, os Orixás, tivessem um pouco mais de paciência e fornecessem os elementos químicos e os alimentos para esses espíritos – foi seguindo esta orientação que Zâmbi deixou o boi amarrado no pé de feijão.
A conversa do Bidu com Zâmbi (Deus), também havia começado em alto tom, cheia de reclamações e lamúrias, e ele foi logo dizendo: “ O Senhor tem culpa em tudo isso! –acusou-o. Quando o Senhor veio aqui a primeira vez, arrumou tudo direitinho, cada qual no seu devido lugar! Deixou o de comê e o de bebê, e um teto pra proteger a moleira. Agora olhe como é que tá! Tá tudo de pernas pra riba! Ou será que tudo aquilo era pra nos engambelar? E não venha dizer que não sabia e que não tem culpa, porque tem sim. O Senhor sabe de tudo. Se não sabe é porque não quer. Porque daí de riba dá pra enxergar aqui embaixo. E ainda tem mais! Quando o Senhor foi embora e deixou aquele outro aqui tomando conta da gente, devia ter escolhido um “deusinho” melhor. Mais honesto! Por que esse aí não presta. Foi só o Senhor virar as costas que ele se bandeou pro lado do “Tinhoso”, e veja só o que ele tá fazendo com a gente!... De repente a prosa tomou outro rumo; agora era em outro tom, mais suave e amistoso, uma conversa branda e paternal.
Agora tenho certeza absoluta que Bidu, por meio de uma entidade espiritual, que quero crer era um Caboclo, falava com Deus, sim! Pois a conversa que no início era ríspida, foi se transformando em cordial e respeitosa, com voz firme, mas serena e pausada, na qual se percebia que era realmente um diálogo entre duas ou mais pessoas, e o ambiente serenou.
Como tudo o que acontece aqui, acontece acolá, em forma de arquétipos, a conversa de Bidu estava sendo idêntica a de Exu com Zâmbi, e foi marcada nova reunião e ficou assentado e consentido que as humanas criaturas ainda em forma de espiral, seriam ajudadas materialmente, iniciando-se com a formatação do corpo por meio do comodato (contrato de empréstimo) das químicas e alimentos. Isso seria feito, faltando, no entanto, saberem, como poderiam eles resgatar os elementos químicos e os alimentos. Diante de tão grave preocupação, Olodum (que comanda os Elementais) que a tudo assistia calado, resolveu se pronunciar e o fez de maneira inteligente, dizendo a todos os presentes que não se preocupassem, pois ele devolveria os alimentos e as essências químicas.
Foi o que Deus também fez para Bidu, e aquela noite passou para ele numa velocidade encantadora, como se montada num cavalo mágico, e ao amanhecer, acordou embaixo de um lindo e intenso temporal. Em pouco tempo, os calangos voltaram, os campos verdejaram, os birros apareceram nos pés de cacau, as frutas e verduras surgiram, as cacimbas encheram-se de águas límpidas e potáveis, as baixadas viraram brejos e piabas, cascudos, acaris, e até caburés surgiram, além de lampreias, traíras e até muçuns. Novas roças foram plantadas e grandes safras foram colhidas.
Até hoje não se sabe o verdadeiro teor da conversa de Bidu com Zâmbi. Mas ele virou devoto de um montão de “santos” e na sala da casa montou um altar que era um verdadeiro peji, e encalacrado no meio dos “santos”, pôs uma imagem de barro de um boi amarrado num pé de feijão. Quando era questionado a respeito, dizia: “Deus mandou fazer, que é para nunca mais na terra existir filhos diferentes, onde um come e outro não; todo mundo tem direitos iguais, pois todo mundo é filho de Deus e Deus não desguarnece seu filho! Quando Deus amarrou o seu boi no pé de feijão era pra todo mundo ter o de cumê!!! E o de cumê aqui num vai fartar nunca mais.