O mergulho do Pelicano
_Quem é o comandante Adalton Costa? _ Perguntou ao dono do bar que estava debruçado sobre o balcão.
O homem inclinado sobre o balcão se endireitou e olhou ao redor, colocando um pano de secar pratos sobre o ombro, antes de falar:
_Adalton Costa!? Oh, sim; o pelicano. Ele está logo ali perto da janela.
O indivíduo que perguntou, virou-se sobre os calcanhares e procurou, mas logo viu junto a uma grande janela, com vista para a movimentada avenida lá fora, um senhor sentado lendo o jornal da manhã e tomando café num copo de geléia de mocotó.
O bar não era assim tão grande nem estava tão cheio quanto costumava ficar durante as noites de sexta ou as madrugadas de sábado para domingo. Naquela manhã em especial havia pouquíssimas pessoas no lugar.
O homem se aproximou do senhor sentado que degustava o café esfumaçante e que provavelmente estivesse se aquecendo com o sol matinal.
_Bom dia_ disse rapidamente e visivelmente entusiasmado. Concluindo. _ O Sr. É o comandante Adalton Costa?
O experiente homem sentado ao sol tinha os cabelos totalmente brancos e ostentava um par de óculos dependurados no pescoço. Trajava uma roupa leve e com muitos desenhos floridos, era até meio extravagante, porém alegre.
_ Sim, sou eu; mas não sou mais comandante. Respondeu o senhor sem desgrudar os olhos do jornal.
_ Posso me sentar? Gostaria de falar com o Sr.
_ Claro que pode, mas duvido que você realmente queira conversar comigo._ rebateu o Sr. Adalton.
_Me chamo José Augusto dos Anjos, sou escritor e estou muito interessado numa de suas histórias. Ouvi dizer que o Sr. Conta histórias como poucos aqui na região.
Finalmente Adalton desviou os olhos do jornal e encarou o homem sentado na sua frente. José Augusto trazia consigo uma pasta preta que parecia muito com a usada por alguns executivos de firmas internacionais, porém, estava vestido como um garoto recém saído da faculdade.
_ Histórias? Mas que histórias?
_ Estou particularmente interessado numa que chamam de “O mergulho do pelicano”.
O senhor Costa sorriu um pouco, mostrando seus dentes parcialmente amarelados pelos anos e anos de café forte.
_ Você sabe o que foi o mergulho do pelicano?
O outro retirava da pasta um computador portátil, enquanto respondia:
_ Creio que sei, mas gostaria de ouvir todos os detalhes.
Adalton dobrou cuidadosamente o jornal e o acomodou ao lado, na mesa, enquanto via que o rapaz sentado na sua frente estava ligando sua máquina.
_ O Mergulho do pelicano foi um desastre. _ disse Adalton meio constrangido. Posso lhe contar outras tantas histórias muito mais bem sucedidas do que essa.
José olhou para o outro rapidamente e interveio:
_ Não! Não; é exatamente sobre essa que eu quero ouvir.
_Mas por que ela? _ perguntou e bebeu mais um gole de café.
José estalou alguns dedos, passou as mãos sobre o rosto e respondeu:
_ Senhor Costa, eu sou um escritor de contos, quando eu era pequeno ouvi essa história e nunca mais me esqueci dela, depois de formado e já publicando meus livros, lembrei dessa pérola verídica e resolvi procurá-lo para ouvir de sua própria boca a história com todos os detalhes.
_Você mergulha com o avião em direção ao mar e..._ Pronunciou o antigo piloto de modo vago.
Ao que o escritor completou a frase:
_...Acaba batendo contra o mar.
Ambos riram.
_ Muito bem, vou lhe contar como aconteceu, mas peço que me perdoe porque a idade levou muitos dos detalhes que eu costumava colocar na história.
José Augusto endireitou-se na cadeira e repousou as mãos sobre o teclado de seu laptop.
_Conte tudo quanto lembrar.
Iniciou-se então o relato:
“Naquela tarde eu estava sobrevoando uma faixa de mar num monomotor Cessna, tudo corria relativamente bem para os padrões da época, eu tinha acabado de fazer contato com o posto em terra e faltava pouco mais de uma hora para eu pousar e ir para casa. Os ventos estavam calmos e o mar tranqüilo abaixo de mim; mas era fato também que eu tinha conhecimento de que um dia antes uma dessas tempestades tropicais havia atingido a costa, eu só não sabia que pessoas tinham sido pegas pela fúria do mar e estavam a deriva já há mais de doze horas.”
“Eu tinha feito minha travessia costumeira com somente combustível suficiente no tanque para finalizar o trajeto, sabe como é, corte de gastos já naquela época; estamos falando aqui de trinta anos atrás. Mas isso não me impediria de realizar o planejado sem problemas.”
José Augusto digitava algumas palavras através do teclado de seu laptop, mas só o suficiente para manter o relato vivo em sua cabeça, afinal já tinha ouvido todo o acontecido antes; apenas de um prisma diferente.
_ Perdão._interrompeu o escritor_ Que tipo de avião é um Cessna?
Adalton pacientemente parou e bebeu mais um gole do café antes de responder.
_ O Cessna é uma aeronave monomotor simples de pilotar e que comporta até três passageiros; são muito freqüentes aqui no Brasil já há muito tempo.
_ Creio que sei._ ponderou o escritor.
“Em algum momento do trajeto eu tive problemas com meu rádio de comunicação, algumas transmissões estavam invadindo a freqüência que nós utilizávamos. Bem até certo ponto não havia sido dado nenhum alerta sobre pessoas perdidas no mar, mas escutei as seguintes palavras saindo pelo rádio; ‘Socorro, por favor, tem alguém na escuta? Minha esposa está grávida. Naufragamos no temporal. Alguém na escuta? Socorro’.”
_ Ouvi dizer que o senhor respondeu algo pelo rádio. _ Disse Jose Augusto.
_ Na verdade não, eu tentei passar o pedido de ajuda para os controladores em terra, mas havia muita interferência e estática; minha voz ecoou e foram os náufragos que ouviram minha mensagem.
“Havia uma grande faixa de água e eu tinha pouco combustível, mas não podia ignorar um pedido de socorro. Fiquei circulando por meia hora, eu acho, até que avistei ao longe uma embarcação, um tipo de veleiro; rumei para lá. O problema foi que quando eu cheguei onde eles estavam meu combustível já estava esgotado, não tive alternativa a não ser desligar o motor e tentar um pouso no mar.”
_ Hora não sabia que o Sr. Estava pilotando um hidroavião.
_ E não estava! Eu acho que naquele dia fiz a maior loucura da minha vida; fui em direção ao mar e acabei batendo contra o mar, meu combustível não seria suficiente para me levar para terra firme mesmo; depois de sair da rota por trinta minutos.
_ Então o que o senhor fez?_ perguntou dedilhando no teclado.
_Mergulhei de nariz no mar. O avião chocou-se com o espelho d’água e eu sai rapidamente da cabine a nado; o barco estava a uns trinta metros e fui até ele.
“Quando cheguei, logo vi que só havia duas pessoas no pequeno veleiro, eram marido e mulher e para meu espanto aquela senhora entrou em trabalho de parto; até hoje não sei o que causou aquilo, mas pode ter sido o stress agudo de quase um dia à deriva e o fato de ter visto um avião caindo no mar próximo a ela. Não sei.”
O jovem escritor interrompeu mais uma vez:
_ Ora; por que essa queda ficou conhecida como “o mergulho do Pelicano”? Não entendo.
_ Muito simples meu jovem. Meu apelido sempre foi Pelicano, desde quando eu comecei a voar, e mergulho foi apenas uma pequena brincadeira com relação a minha queda espetacular e sem combustível. Nunca podia eu imaginar que essa história fosse tomar proporções tão grandes.
_ O que houve?
_ Nada sério, eu só perdi o direito de voar desde então; logo perdi também meu emprego e daí pra frente foi uma bola de neve, mas não se preocupe, eu há muito tempo aprendi a confiar em Deus, nunca me faltou nada, eu consegui outros empregos com salários menores, porém dignos e assim criei meus filhos e filhas até com uma certa tranqüilidade, sem luxos, mas com tranqüilidade.
_ Sinto muitíssimo. _ José Augusto estava sinceramente sem jeito.
_ Não sinta. Eu fiquei bem, voltemos à história.
“Sem escolha e com um pouco de conhecimento de primeiros socorros, fiz o parto daquela senhora, na verdade era uma menina, deveria ter seus vinte ou vinte e cinco anos; o esposo era alguém de posses, homem rico com dinheiro suficiente para ter seu próprio veleiro, porém sem muita experiência náutica. Por fim a jovem mulher deu a luz um menino, grande e bonito; fiz todos os procedimentos rústicos que me lembrava para que a moça ficasse bem e pedi a Deus que nada de mal acontecesse.”
“Quatro horas depois um barco de resgate surgiu e nos encontrou; o pessoal que estava em terra acionou a guarda costeira quando perdeu contato comigo e logo vieram procurar. Foi um dia um tanto quanto turbulento, mas creio que ajudei aquelas pessoas e sou grato por isso.”
_ Essa é a história. Falta alguns detalhes como eu disse, mas creio que em resumo está tudo ai.
_ Você não perguntou os nomes dos dois que você ajudou a salvar?
_ Não pensei nisso, apenas queria me certificar de que a mãe e a criança ficariam bem.
José Augusto parou de dedilhar o computador portátil e encarando seu interlocutor disse:
_ O nome dela era Rosa Maria dos Anjos e o dele Edgar Valfredo dos Anjos, ele morreu recentemente e, você estava certo, possuía bastante dinheiro, segundo consta ele deixou a fortuna para os filhos e para a esposa, mas em gratidão ao estranho que fez o parto de sua mulher naquele dia faz trinta anos atrás, ele também deixou uma volumosa quantia para você. Por isso vim procurá-lo.
Surpreso Adalton perguntou:
_ Mas então você não é escritor? Como sabe disso tudo?
_Eu sou escritor, mas sou também a criança que você ajudou a trazer ao mundo, essas pessoas são meus pais e fiz questão de vir trazer a notícia de que o senhor foi citado no testamento do meu pai. O senhor acaba de ficar rico; meu pai e minha mãe nunca esqueceram de sua bondade e agora é a hora da retribuição.
Ele fez uma pausa e continuou:
_ O que o homem plantar isso colherá, não é assim? Você plantou vida naquele dia, para que nem eu nem minha mãe morrêssemos ali e é hora de receber o fruto dessa boa ação.
FIM