A LIÇÃO
Quatorze anos de idade, forte e esperto, pensando em ganhar alguns trocados lá ia eu todos os dias após as aulas fazer um “Bico” numa pequena torrefação de café do Sr. Garcia. Ele era um sujeito bom e muito querido no bairro. Eu e dois funcionários fixos, Agnaldo 'Pindoba' e o Carlinhos Calhambeque, tínhamos como tarefa atender ao balcão, fazer faxina, embalar as mercadorias e transporta-las para uma Rural Willys que fazia as entregas. Quando havia tempo, o Sr. Garcia prazerosamente nos ensinava o funcionamento do torrador, moinho e seus macetes.
O ambiente, apesar de muito quente, era agradável e divertido, não nos faltava nada. As quatro horas lanchávamos ao som agradável de um Curió avinhado em sua majestosa gaiola que, dopado pela fumaça de cafeína do torrador, não parava de dobrar o canto até cair do poleiro. O Sr. Garcia, sujeito bem “apanhado” apesar de bem casado, era alvo dos olhares das mulheres do bairro. Apesar de muito discreto, ele era muito chegado a nobre arte do sexo e, lá levava algumas mais “atiradas” para o meio da sacaria e “cráu”. Ele sempre nos advertia para que ficássemos no balcão enquanto ele furunfava as demônias. O Sr. Garcia era um urubu, se atracava em qualquer espécie de carniça. Eu, o Agnaldo e o Carlinhos, que de bobos não tínhamos nada, em silêncio, nos revezando, observava-os por um pequeno furo na divisória, alí ouvíamos os gemidos da dupla dinâmica, era muito excitante.
Uma vez por ano o Sr. Garcia desmontava os equipamentos para a troca das peças desgastadas por novas. As peças velhas; rolamentos, engrenagens e parafusos ele as colocava em uma caixa de madeira para o caso de precisar de um “quebra-galho”. Em meio à manutenção eu pedi ao Sr. Garcia se poderia levar alguns rolamentos e parafusos para fazer um carrinho de “Rolemã”, ele prontamente disse que sim, poderia levar. O tempo passou. Um belo dia lembrei-me dos rolamentos e parafusos que estavam na caixa de madeira, ao sair levei-os para casa. Lá chegando coloquei a caixa no chão próximo a entrada da cozinha. Ao chegar no final da tarde, como era de costume, meu pai tirava o seu paletó e a gravata e pendurava no mancebo da sala. Ao chegar a cozinha, beijou e perguntou a minha mãe o que havia naquela caixa. Minha mãe respondeu que não sabia e, que eu havia trazido da rua. O meu pai abriu a tal caixa e viu o material em seu interior. Imediatamente me chamou e pediu explicações. Eu lhe disse que o Sr. Garcia havia me dado para a confecção de um carrinho de “Rolimã”. O meu pai, desconfiado, como sempre, disse-me que aquelas peças lhe pareciam novas. Eu argumentei que eu havia limpado-as antes trazê-las. O meu pai nada mais disse e fomos nos lavar para o jantar. Sentados à mesa senti que o clima estava pesado, que o meu pai estava matutando alguma coisa séria. A minha querida mãe, filha de Madeirenses, ficou observando tudo. Com certeza, conhecendo bem o seu parceiro ela já estava com pena de mim.
No dia seguinte, quando já saía-mos de casa, ele para o trabalho, e eu para escola, ele disse-me que o esperasse na hora do almoço. Ao chegar, antes mesmo de almoçar, disse-me que pegasse aquela caixa e o acompanhasse até a torrefação. Lá fui eu de cabeça em pé sem preocupação alguma. Lá chegando ele pediu-me que colocasse a caixa no chão próximo ao balcão.
Bateu palmas e chamou pelo Sr. Garcia. Conhecidos de longa data se cumprimentaram. O Sr. Garcia perguntou qual o motivo da visita, no que o meu pai perguntou:
- Oi Garcia, tudo bem? Diga-me, você deu algo ao meu filho recentemente?
- Nonô..., que eu me lembre agora, nada, por quê?
- È que o meu filho apareceu em casa com uma caixa cheias de peças e disse que você deu a ele.
Imediatamente fiquei “Azul”, comecei a tremer e suar, pois sabia qual era a interpretação que o meu pai daria a resposta do Sr. Garcia.
Meu pai pediu-me, já com cara de bravo, que colocasse a tal caixa sobre o balcão. O Sr. Garcia vendo do que se tratava, sorriu e disse-lhe que realmente havia dado aquelas peças para mim.
O meu pai olhou-o fixamente nos olhos e disse:
-Garcia, por favor, não tente protegê-lo, você acabou de me disser que não havia dado nada a ele.
- Nono, já faz algum tempo que eu dei isso a ele, por isso não me lembrava. Disse o Sr. Garcia:
- Você é um sujeito legal, até entendo você, mas não me venha com essa que lembrou agora, fique com as suas peças que eu vou para casa ter uma conversa séria com o meu filho.
- Nono, pare com isso eu... Tentou argumentar o Sr. Garcia:
Na rua, minha orelha segura por uma mão que mais parecia uma tenaz, suspenso, quase não conseguia pisar no chão, foi um grande mico, todo mundo viu, riu e comentou.
Chegando a casa, se não fosse a “Portuguesa” a me proteger e enfrentá-lo, eu teria sido esfolado vivo, com certeza.
Assim funcionavam as coisas antigamente, os pais sempre estavam de olho nas atividades de seus filhos, apesar de ama-los não davam moleza.
Na hora do almoço, em meio a choros, o aviso que ele deu a mim e meus irmãos foi definitivo:
- Nesta casa só entra o que for pago por mim, entenderam? Nada mais!!!
Apesar de tudo continuei a trabalhar na torrefação, mas não pedi mais nada a ninguém ou aceitei ofertas. Até hoje, quando alguém me oferece algo, gratuitamente, sinto um pequeno estresse ao lembrar da lição de meu saudoso e querido velho.
Hoje penso que, apesar dele estar equivocado naquele caso, essa foi uma das grandes lições que recebi e aprendi em minha vida.
“O que vem de graça você não saberá o quanto lhe custará, já o que é pago, batalhado, você saberá o valor e poderá negociar.” Palavras do meu pai, o saudoso Nonô.