O Homem que Virou Bode
Enquanto esperava que trocassem o óleo do meu carro (o que era verdade e não duplo sentido) aproximou-se um sujeito engraçado, bem vestido ao modo que lhe permitia o seu bolso, sorriso faltando alguns dentes, cabelo penteado possivelmente abrilhantado com gel, calça e camisa bem passadas, sendo a primeira de uma azul celeste brilhante e a segunda preta e frisada com listras verticais vermelhas muito discretas. O sapato engraxado, apesar das surras dos extensos quilômetros que denunciara haver percorrido. Veio a mim como fizeram as crianças perante Jesus Cristo oferecendo literatura de cordel.
O homem trazia uma pequena pasta de plástico contendo vários volumes da sua arte. Vinha-lhe às costas também uma viola, que não sei dizer se de qualidade, visto não tratar a música de um ofício que entenda. Trouxe um aberto sorriso de sinceridade e já foi exibindo seus dotes rimando uma frase com outra e dizendo da dureza da vida humildemente pedindo colaboração para que eu adquirisse um ou outro volume.
Não sei que trevas me cobriram naquele dia. Devia ter acordado virado para o oposto da felicidade ou da boa educação e o escorpião no bolso não quis se abrir ao que me pedia o pobre infeliz. Foi logo abrindo, sem que fosse solicitado, a sua pasta amarelada e mostrando um volume atrás do outro daqueles livrinhos típicos, com capas brancas ou azuis, tendo uma gravura feita à mão e muitas histórias que pouca gente conseguiria imaginar sem tomar um ou mais tragos dos bem consistentes.
Os temas eram variados e engraçados, mas geralmente girando ao redor de uma religiosidade latente, sendo Deus e o Diabo figuras recorrentes que decidiram no sertão travar a luta final pelo destino da condição humana. De todos gravei ¨O Homem que Virou Bode¨. Peguei o pequeno volume, por mera educação, e comecei a ler a história do caboclo que não rezava, que cuspia em imagens santas e que ao comer carne na Sexta-Feira da Paixão foi amaldiçoado com a desdita de virar bode.
O artista popular, não menos artista que os famosos, queria logo engatar a história na sua viola, tive que insistir muito para que não o fizesse e me arrependo até hoje de não usufruir daquele evento particular, mas, como disse, alguma coisa me fizera amanhecer de mau-humor redobrado naquele dia.
Pedi desculpas ao homem e, sem me apresentar como colega escritor, tratei logo de despedi-lo com palavras falsamente gentis utilizando a escusa barata de não carregar trocado algum.
Ele ainda insistiu alegando que poderia levar 3 volumes por uma quantia irrisória, irrisória mesmo, que mais serviria para auxiliá-lo do que qualquer outra coisa. Seja pela angústia de estar ali fazendo algo que eu não queria, ou pela aflição de um horário que talvez devesse cumprir, ou ainda estando mordido pelo diabo, virei ao homem minha pior face e permiti que partisse sem deixar comigo alguns daqueles pequenos tesouros da alma popular.
Quando ele se afastou fiquei pensando o que me representaria alguns trocados? Arrependido, fui até a esquina para ver se o encontrava. O homem evaporou. Além do posto de gasolina no qual estava, várias lojas se enfileiravam de um lado e outro da larga e movimentada avenida. Perguntei pelo homem em uma loja, e em outra. Ninguém o vira e nem sabiam de violeiro por ali. Corri para a outra ponta e indaguei em novas lojas. Nada. Conversei com os frentistas do posto.
- Homem com viola nas costas? Não vimos, não...
Mas como ninguém o vira? Voltei ao local da troca de óleo e indaguei ao rapaz que arrumava o meu carro se era comum aquele repentista passar por ali?
- Que repentista? – inquiriu assombrado. Não vira ou ouvira coisa alguma. Fiquei na parte de fora do estabelecimento tentado resolver o mistério até que aceitei a tese de ter sido visitado por um anjo (e eles o fazem muito) disfarçado de um homem simples a me testar a solicitude e a caridade. Falhei de novo e, assim, persisto acorrentado a este mundo com toda a minha pequenez. Melhor sorte tiveram as crianças acolhidas por Jesus...