Segredos do Mar
Assim era o mar hora calmo, noutra agitado, hora de um azul radiante noutra cinza, quase em cinzas como estava o coração de Irecê. Seus olhos ali prostrados no horizonte, dia após dia, desde antes de o sol chegar até depois do anoitecer.
Ficava assim, olhar perdido, fixo no infinito, agachada em frente à praia... Silente, como se nada e ninguém existisse além da sua própria dor, seu desalento.
Aos primeiros dias, e lá se iam pouco mais de seis meses, chorou inconsolável na beira da praia, suas lágrimas abundantes uniam-se em sal às águas, desaguando tristeza no mar que agora acusava e que tanto amou.
Irecê pressentia. Tinha sentidos aguçados, na tribo era meio que uma vidente.
Seu Moreno nascera no mar, na canoa da mãe pescadora e era mais da água que da terra, ela dizia, mais de Iemanjá que dela. Vivia da pesca, mas tinha com o mar um encantamento. Nalguns dias que acordava cedinho, escuro ainda e nem era dia de jogar a rede,mas ele se ia, botava a canoa na água, nem falava com sua índia, saía em silêncio, como se seguisse um chamado. Ficava o dia inteiro, enquanto na praia Irecê esperava, entre aflita e conformada.
Mas naquela noite tudo havia sido diferente, e ela percebeu.
Moreno, findo o jantar de peixe e farinha d’água, atou a rede chamou sua índia, que tinha fugido com ele da Aldeia dos Muirapinas no oeste do Pará. No seu linguajar caboclo, disse que a amava, e nunca Irecê foi tão feliz. Bem naquela madrugada ela embarrigou, o que há tempos queriam. Ao amanhecer, Moreno foi ao mar depois de beijá-la e foi então que ela percebeu: era a despedida. Sem entender bem o porquê, soube que era a última vez que o via, o último beijo.
A certeza veio um tempo depois, um mês de busca dos pescadores e nada, nem sinal da canoa. Na praia, no fim daquela tarde, Irecê recebeu de um pescador o colar de sementes com uma espinha de peixe em forma de crucifixo que Moreno nunca tirava. O pescador o achara pras bandas do Coqueiral, trazido pelas ondas. Da canoa e do corpo nada voltou.
Irecê carrega na barriga há seis meses, o filho de Moreno, e desde o dia da confirmação, não sai da praia.
Na sua lembrança, repete-se a cena do último olhar dele, vê-se na praia olhando a canoa sumir naquele aguaceiro sem fim. Não sabe por que, nada entende, ou tudo sabe e tudo entende, mas crê que um dia ele voltará. Dia e noite culpa e ora pra Iemanjá, incoerências que ela nem percebe, tamanha é a dor da espera. Pois dizem que Iemanjá devolve a praia, depois do amor, o corpo de pescador.
Comenta-se no vilarejo que ela prometeu dar seu menino para a Rainha das Águas, se ela devolver seu Moreno. As pessoas dizem que não sabem se Irecê sobrevive pelo seu filho, ou se ele a faz viver. Vê-se que a barriga esmirrada cresce, mas ela emagrece a olhos vistos.
Dizem que a índia vive assim, alimentando-se da esperança da volta do Moreno.
E o mar, segue seu curso,
Encher,
Vazar...
• Irecê – a mercê da corrente, superfície da água.
• Iemanjá- Mãe cujos filhos são peixes, a divindade do mar.
• Muirapinas – Tribo Indígena do oeste do Pará, baixo Amazonas/ Juruti.
* neste Conto contei com a leitura, sugestões (aceitas) e participação do Poeta Claiton, o que tornou mais leve o deleitar. Obrigada querido, por tua prensença.