A BENZEDEIRA
Francisca tricotava tranquilamente a gola de um suéter que já havia algum tempo estava por acabar. Sentada em sua velha cadeira de balanço em frente à uma janela que dava para um enorme quintal donde Francisca avistava seu canteiro de hortaliças. Francisca se orgulhava do seu canteiro de hortaliças. Em frente ao canteiro estava uma outra plantação que para ela era ainda mais preciosa. Tratava-se do herbário onde uma variedade extensa de ervas e plantas curativas eram cultivadas. Dali Francisca colhia logo bem cedinho as ervas e preparava seus ungüentos ao que o povo apelidava de ungüentos milagrosos. Seus ungüentos já haviam sarado e curado muita gente. Já com seus oitenta anos, Francisca era uma exímia conhecedora das ervas e dos seus benefícios, sabendo aplicar cada um dos componentes a sua determinada função no organismo humano.
Margeando o quintal havia ainda um enorme canteiro de rosas que exalavam um perfume delicioso. Francisca aspirava àquele odor com satisfação. Ela é quem havia plantado cada uma daquelas roseiras. Mas a frente havia margaridas, algumas açucena, olho-de-boneca, espadas de São Jorge, comigo - ninguém –pode, entre outras.
Vez por outra, Francisca largava o tricô para secar com seu lenço de tecido florido e com um bordado azul na barra, as vistas cansadas que lacrimejavam. As mãos enrugadas e já endurecidas por conta do peso do tempo titubeavam um pouco trêmulas levando o lenço de encontro aos olhos ligeiramente úmidos. Mãos estas que já não mais empunhavam a agulha de tricô com a firmeza de outrora.
Pouca demora, ouviu o ranger do velho portão de madeira e os cães já deram o sinal avisando que alguém acabara de chegar. Novamente largou o tricô sobre uma mesinha de canto, levantou-se da cadeira e foi dar conta de quem havia chegado. Deu uma espiadela pela janela e avistou uma mulher que aparentava uns trinta anos trazendo uma criança de colo consigo.
-Sinhá Francisca. – chamou a mulher de voz estridente batendo palmas.
Francisca foi até a porta que dava para os fundos da casa e a abriu:
A mulher estava postada em frente a porta o olhar de súplica. Francisca foi atraída a olhar para a criança que parecia ter pouco mais de oito meses franzino e com aspecto doentio.
-Fala filha. – incentivou Francisca.
-Tenho precisão, sinhá. O guri tá muito mau.
Francisca afastou-se um pouco do batente da porta e fez sinal para que a mulher entrasse.
A mulher entrou na humilde casa de Francisca, um tanto quanto ressabiada e alheia, parecia temerosa de algo de extraordinário e sobrenatural fosse acontecer diante dela a qualquer instante. Ela reparou no cômodo que acabara de adentrar. Era a cozinha da casa onde havia um fogão à lenha onde um panela de fervo fervilhava e o cheiro de ervas contagiava o ambiente. Uma mesa quadrada no centro tendo um trilho de mesa branco disposto sobre ela com um vaso de flores ornamentando. Tudo era por demais simples, porém muito caprichosamente limpo. O chão de madeira era encerado, sendo possível espelhar-se. Francisca conduziu a mulher para um outro cômodo que ficava nos fundos, entre a cozinha e uma pequena sala. Era um quarto pequeno onde havia uma mesa de madeira envernizada com uma toalha de mesa branca e sobre a mesa havia um sagrado coração de Jesus, uma imagem da nossa senhora da lapa, um crucifixo de madeira, um castiçal com uma vela que havia queimado até a metade, a bíblia sagrada e um copo com água. Ao lado da mesa havia ainda uma prateleira onde estavam vários potes contendo os ungüentos preparados por Francisca. No lado direito do quarto uma janela onde uma cortina de rendas volitava ao sabor da brisa suave que caia aquela tarde. Faziam parte também da mobília duas cadeiras. Uma delas Francisca apontou para que a mulher se sentasse.
A mulher ficou ainda sem saber ao certo como agir.
Percebendo seu receio Francisca insistiu:
-Pode sentar filha. Não tem motivo para acanhamentos. Você veio aqui atrás da minha ajuda e eu estou disposta a lhe ajudar. Não tenha medo. Eu sei que muitas pessoas têm medo das benzedeiras e as confundem com bruxas e seres do mau, mas acredite não é nada disso. Sou apenas uma, medianeira de Jesus Cristo e com minhas rezas posso ajudar a curar as pessoas que me procuram.
A mulher ouviu Francisca e a seguir aceitou a cadeira que lhe era oferecida. O menino dormia tranquilamente parecendo alheio a tudo aquilo.
Francisca voltou-se para a mesinha que lhe servia de altar. Fez uma breve prece em silencio, retirou o toco de vela e colocou outra vela em seu lugar, fez o sinal da cruz e pegou o rosário de cadeira, a seguir sentou-se defronte para a mulher, que baixou os olhos para o filho pequeno e adormecido.
_ o que ta acontecendo, com ele filha? – inqueriu Francisca
-Ele tem alguma coisa muito ruim. – respondeu a outra
-Me descreva essa coisa ruim. - pediu
-Bom ele chora durante a noite toda, e tem uns acessos que parece que vai sufocar, além do que ele mal se alimenta e vive fraco. Acho que ele vai acabar morrendo. –desabafou a mulher tentando conter o choro.
- Você é uma pessoa de fé? – tornou Francisca
-Sim. – respondeu a mulher sem titubear.
-Então acredita que a minha benzedura vai curar o seu menino?
-Acredito.
Francisca olhou dentro dos olhos daquela mãe aflita. Fechou os seus olhos e passando o rosário na direção do corpo do menino iniciou uma reza que mal podia ser compreendida. Ela falava palavras que não se conhecia em nenhum idioma e fazia movimentos rápidos e quase convulsivos era impressionante, como uma mulher idosa tinha a energia de Francisca e a fé que lhe elevava aos olhos vistos, o espírito. Parecia ser outra pessoa. Ao final da reza ela olhou para a mulher que estava entre impressionada e surpresa com aquele breve, porém muito edificante ritual de benzedura e disse:
-Filha o que o teu menino além de quebrante e mau-olhado é acesso provocado por vermes. Ele precisa tomar esse remédio à base de folha de hortelã e dente de alho, além de tu friccionares esse ungüento pela região da barriguinha dele.
-E só isso? – perguntou admirada
-E trazer ele pra receber a benzedura por nove dias.
- Eu cheguei aqui temendo que algo sobrenatural pudesse ocorrer. –desabafou a mulher com simplicidade enquanto guardava o ungüento e o xarope à base de hortelã na bolsa que carregava a tiracolo.
-Todos tem a mesma impressão.
-Sinto uma paz.
-É assim que tem que ser.
-Eu....
-Não agradeça. Não se agradece a benzedura. – cortou Francisca já adivinhando a intenção da outra.
-Tá. – ela levantou-se da cadeira, ainda sentindo-se um pouco zonza com tudo aquilo. Por não ter sido como ela havia fantasiado. Estava aliviada por ter sido algo simples e bom.
O menino acordou e Francisca reparou que ele tinha lindos olhos azuis. A criança exibiu um tímido sorriso, o olhar ainda um pouco apático.
-Ele vai ficar bom. – assegurou Francisca. – se seguir a risca as minhas recomendações. Dar o xarope de hortelã três vezes ao dia e a noite antes de dormir esfregar o ungüento na barriga dele.
-Eu entendi Sinhá Francisca. E trazer ele pra benze por mais oito dias para completar as nove benzeduras, não é isso?
-Assim. – respondeu.
Francisca acompanhou a mulher até a porta e lá já se encontrava mais algumas pessoas esperando para serem atendidas. Um homem ainda jovem, trajando uma calça de linho cinza e uma camisa de gola a pólo veio ter com ela. Os passos pareciam lentos e imprecisos demonstrando nos olhos e nos lábios uma pungente dor. Ele aproximou-se da velha senhora e disse:
-Sinhá to muito precisado...
Francisca fez um gesto para que ele a seguisse. Isso ocorria todos os dias. Faça chuva ou faça sol. Esse é um dos motivos para Francisca nunca terminar de tricotar seu suéter.
FIM!