ASSOMBRAÇÃO

Todo mundo na redondeza sabia que aquele casarão dos Quatro Cantos era mal assombrado.

Toda noite era um baticum dos seiscentos diabos.

Não havia cristão que conseguisse dormir ali dentro.

O antigo proprietário, um português velho que tinha negócio de secos e molhados por atacado no centro do Recife, morreu do coração pouco tempo depois da sua esposa, também portuguesa.

Dona Maria tinha tuberculose e os que já viram a assombração não têm dúvida, é ela.

Muito magra, vestida de branco, meias de algodão, chinelos e um chale preto de lã, bordado com flores coloridas nos ombros, aparece descendo a escada do sótão.

Dizem que como ela penou muito, se agarrou demais à vida ainda está penando...

No sobrado ficou tudo como eles deixaram.

Não tinham filhos e os parentes de Portugal nunca deram as caras para reclamar o que, por herança, lhes pertencia.

Na parte de baixo, no porão, os móveis velhos, os trastes como seu Avelino chamava.

Na parte de cima, os móveis normais de uma casa sem luxo.

Sala de visitas com um conjunto de palhinha, sala de jantar com mesa grande e consoles com tampo de mármore, enfeitados com porcelanas chinesas.

No meio da cozinha um fogão, à lenha, todo de ferro.

A pia da cozinha não tinha balcão e a torneira de cobre muito alta, onde uma meia de algodão, foi amarrada para evitar que quem estivesse fazendo o serviço ficasse molhado.

Mesa antiga de pés torneados substituía o balcão e dois bancos compridos, completavam o ambiente.

O banheiro todo azulejado, louça sanitária manchada de ferrugem, não tinha janela.

A ventilação ficava por conta de uma grade de ferro no alto de uma parede.

Era cômodo escuro, úmido, cuja instalação elétrica havia ido para as cuias há muito tempo.

Entre as salas de visitas e a de jantar ficava a escada para o sótão, guarnecida de grade de madeira cuja chave esteve sempre no bolso de seu Avelino.

Ele não queria ninguém lá em cima...

Num belo dia de sol, apareceu pela rua das Crioulas um senhor de aparência respeitável, procurando saber como e com quem poderia se entender para alugar o sobrado vez que, vindo de Maceió com família numerosa, pretendia se instalar no Recife, com negócios de marchante.

Procura daqui, pergunta dali até que um senhor, também residente na rua, fazendo com que entrasse para aliviar o calor deu as informações de onde encontrar o interessado no espólio do português.

O homem morava no centro da cidade, num sobrado por cima da loja do falecido.

Seu Hermínio já se dispunha a ir embora quando a dona da casa apareceu, seguida por uma criadinha que conduzia uma bandeja de prata com dois copos de suco de pitanga.

Seu Hermínio, de pé, agradeceu a gentileza e disse que iria imediatamente cuidar do aluguel.

A dona da casa disse então que iria se sentir ofendida se ele recusasse o almoço.

Entre trocas de gentilezas, foram levadas para dentro, pela criadinha negra, as luvas, a cartola e a bengala do senhor Hermínio.

Durante o almoço, como não poderia deixar de ser, a conversa girou sobre a assombração...

Seu Hermínio ouviu toda história e sorrindo disse ser esta mais uma razão para ficar com a casa.

O trato foi fácil e o sobrado alugado com a promessa de venda logo que a justiça determinasse para quem ficaria o espólio, tudo de acordo com o processo judicial que havia sido impetrado pelos antigos empregados do seu Avelino, que muito merecidamente, se haviam habilitado como herdeiros legais.

O trem de Alagoas trouxe os móveis até a estação central.

A família chegaria ao porto do Recife, no dia seguinte.

Eram ao todo vinte e duas pessoas que tiveram de ficar hospedados em uma pensão familiar, enquanto os móveis eram levados pelo carro de bois da estação para o sobrado.

O ex funcionário do seu Avelino, entregou a chave do casarão e a do cadeado do sótão.

No dia em que mudaram, os vizinhos vieram dar as boas vindas e fatalmente chegou-se na história da assombração.

Quando todos saíram, seu Hermínio sentado numa das cadeiras de balanço disse para dona Enedina, sua cunhada viúva, que iria dormir mais tarde.

Que ela fizesse companhia a sua esposa, dona Mathildes, que estava rezando o terço em frente ao oratório, no quarto do casal que ele iria tirar aquela história de assombração a limpo.

Em pouco tempo a casa estava mergulhada no mais absoluto silêncio.

Apenas o ressonar das pessoas...

O motor, da luz elétrica, foi desligado e o Recife foi dormir também...

Seu Hermínio levantou e acendeu o candeeiro...

A penumbra envolvia tudo, alongando as sombras, o ressonar cadenciado dos parentes, a calma, a tranqüilidade, o sono...

Seu Hermínio acordou com o ruído de passos...

Empertigou-se e ficou à escuta...

Com toda certeza, alguém estava descendo as escadas do sótão...

Eram passos cadenciados, pan, pan, pan...

Seu Hermínio, coração aos pulos quase saindo pela boca, suspendeu a corrente e abriu o cadeado, candeeiro à mão, começou subindo a escada...

Na semi obscuridade viu a ratazana, hipnotizada pela luz, parada num dos degraus.

Mais um passo e o animalzinho entrou num buraco da madeira na lateral de um dos degraus.

Com o movimento brusco, empurrou escada abaixo uma batata inglesa das grandes que repetiu pan, pan, pan esclarecendo o caso da assombração.

Seu Avelino, o comerciante português, estocava no sótão os artigos que durante a escassez, fatalmente, pegariam preços melhores.