O DIGNO E O HONRADO
A vivenda dos Guedes, à beira do Rio Maratauíra, afluente do Tocantins no nordeste do Pará, era o ponto de encontro dos ribeirinhos. Por possuir o maior atracadouro da região e também servir como entreposto comercial, no cais, com exceção aos domingos, o vende e troca de mercadorias era intenso bem lembrando o Ver-o-Peso, a maior feira de Belém. De longe se avistava a casa grande com seu telhado antigo, paredes azuis, um terreiro limpo e árvores muitas dando um ar pitoresco ao lugar.
João Guedes, o português sisudo, azeitoneiro do sul de Portugal que, no final do século XIX viera tentar a sorte por aqui junto com outros patrícios, desembarca em Belém, mas, prefere subir o rio, seguindo o conselho de um padre capucho, Pe Alfredo, que conhecera na longa viagem de navio. Em Abaeté, hoje Abaetetuba, município ribeirinho, distante uns 80 km da capital, o português decidiu investir seu dinheiro e seu suor. E deu certo, com alguns poucos anos de dedicação e muita mão de obra, conseguiu comprar um engenho de cana-de-açúcar aonde além de beneficiar a cana, ainda fabricava seus derivados como a cachaça, o açúcar, a rapadura e o mel.
Na casa grande Dona Ana, a portuguesa, que acompanhara o marido na bem sucedida aventura, administrava o dia a dia de uma dezena de empregados e dos filhos. Boanerges e Pedro que estudavam em Belém, só vindo aos finais de semana para a vivenda e, Clara, dezesseis anos, a caçula, que passava os dias aprendendo a costurar, bordar e cozinhar para se tornar uma boa esposa mas que só ia ao terreiro e ao cais aos domingos, quando estivesse vazio, afinal era uma moça de família.
Numa tarde de junho, quando o céu e o rio coravam diante de um magnífico por de sol, Clara e sua dama de companhia, corriam pelo terreiro alegremente até que, no cais, Clara sentou-se e pôs-se a admirar o infinito, seu olhar parecia esperar a lua, já que o sol se despedia. “-Boa tarde, senhorita”. Jerônimo, caboclo forte, pele queimada, filho da terra, plantava e vendia cana-de-açúcar para os engenhos, ouvira falar da beleza da bela jovem da vivenda dos Guedes e planejara uma estratégica abordagem para conhecê-la.
“-Que queres aqui?” grita Boanerges já de rifle na mão, a gritaria trouxera a todos para o terreiro, calmamente, virando-se para João Guedes, Jerônimo, responde num tom de voz que pôde ser ouvido por todos os presentes: ”-Vim pedir a mão de sua filha em casamento”. A audácia do caboclo pegara o português de surpresa e de chofre replicou: ”-Será sua, se daqui a doze meses tiveres um engenho e um palácio para minha filha”, e, virando-se entrou na vivenda, dando por encerrada a conversa. Nem mesmo João Guedes acreditara no que dissera; “Mas quando?” Aquele borra botas jamais conseguiria, em um ano, o que ele em meia vida acumulara, e nunca mais tocariam no assunto.
Enganara-se o português. Na primeira semana de junho do ano seguinte, Jerônimo, acompanhado do pai, trouxe-lhe alguns documentos comprovando a compra do engenho Rio Grande e da casa mais bonita da cidade, consolidando assim o noivado.
Clara e Jerônimo casaram-se na Igreja Matriz em dezembro de 1900, numa linda cerimônia celebrada por Pe Alfredo e toda a cidade de Abaeté esteve presente. Foram muito felizes, tiveram doze filhos e até hoje, por lá, se comenta a história da dignidade de Jerônimo, que trabalhou duro para poder casar com a jovem Clara, em tempo tão curto, e, da honradez de João Guedes que, para manter a palavra, abriu mão de seu bem mais precioso, duas coisas que, talvez, nem mais existam neste mundo.