HOMEM DO MAR
O barco seguia tranquilamente seu curso, a brisa soprando suave, as águas mansas. Mestre Salustiano, é homem do mar. Para ele olhar aquela imensidão de àgua é prazeroso. O vento batendo na polpa, as ondas tamborilando no casco da embarcação, soava como música para os ouvidos do velho pescador que há quarenta anos vivia dentro de um barco de pesca, era raro encontrar mestre Salustiano em terra firme. A bordo do barco Netuno, ele se sentia em casa. O mar era o seu quintal.
Como homem do mar, mestre Salustiano já havia enfrentado todas as adversidades que colocam em risco pescadores, causa avaria na embarcação, deixa mulheres esperando na beira do cais, angustiadas, mão sobre a testa tentando visualizar o barco que traria seu homem para casa. Porém muitos jamais voltaram, muitos foram sepultados no mar. Mestre Salustiano ansiava por este destino. Queria ser sepultado no mar e deixar seu corpo ser levado para os braços de Iemanjá nas águas do sem fim.
Esse talvez fosse o sonho de todo homem do mar. Justamente por pertencer ao mar é que mestre Salustiano nunca formou família, nunca quis ter filhos. Sempre amava as mulheres do cais, saciava sua fome e sede de amor nos braços daquelas que eram como ele sem porto definido. Ele pertencia ao mar e no mar morreria.
Estórias ele tinha uma coleção delas para contar, aventuras, dramas e tragédias. De tudo um pouco. E todos ficavam absortos ouvindo os contos daquele que conhecia o mar como nenhum outro e sabia todos os segredos e mitos.
Certa vez, mestre Salustiano conheceu Ana. Era uma prostituta que esperava pelos marinheiros e pescadores que sedentos por uma noite de amor e por receber o carinho de uma mulher após passar meses na companhia de homens fedendo a suor e a peixe.
Mestre Salustiano estava há mais de um mês sem descer em terra firme. Assim que ele atracou o Netuno, vislumbrou Ana. Morena estatura mediana, pernas roliças e peito grande. Os olhos do velho pescador espreitaram e se focaram nos lábios bem torneados e contornados com batom vermelho escandaloso. As vestes não eram menos escandalosas. A blusa tomara- que –caia, deixava a mostra partes dos seios e a saia de tão curta nada dificultava ou deixava esconder o que quer que fosse. Mas o que mais encantou mestre Salustiano foram os olhos. Os olhos eram de um verde profundo. Parecendo o mar em fúria.
Ela estava no deque, em pé, com um pé apoiado na balaustrada. Mestre Salustiano aproximou-se e chegando perto o bastante para sentir o aroma de jasmim que exalava da colônia que ela usava.
- Nossa mãe, isso é o que chamo duma mulher cheirosa! – exclamou.
Ana sondou os olhos escuros e na pele bronzeada do pescador e disse:
-Eu gosto do teu chero de mar, marujo.
Ela rio, e o rosto todo se iluminou.
-Quer conhecer o meu barco? – indagou com um meio sorriso cheio de malicias.
-Quanto ta disposto a me pagar?
-E tu tens preço?
-Todo mundo têm.
-Me mostra o que tu sabe faze que eu te mostro o quanto devo te pagar.
-Aceito.
Mestre Salustiano envolveu-a pela cintura e a levou a bordo do netuno. No interior do barco eles desceram uma escada e chegaram ao compartimento onde Salustiano tinha um beliche com duas camas, um armário pequeno, e uma pequena cozinha, com um fogão de mesa, um pequeno refrigerador e um armário suspenso onde ele guardava alguns utensílios e mantimentos, sendo que ele passava muito tempo no mar ele levava consigo uma boa provisão de alimentos e agua potável, para no caso de surgir qualquer imprevisto.
Ana jogou sua bolsa sobre uma mesa pequena onde mestre Salustiano traçava o plano de navegação. Sobre a mesa havia mapas e diversos esquemas e rotas.
-Eis aqui meu modesto lar!
-Já entrei em espeluncas piores. – disse. – até que é bem simpático.
-Toma alguma coisa?
-Tem cerveja?
-Isso não pode faltar na geladeira de um bom marujo. Respondeu sorridente enquanto se dirigia ao refrigerador e pegava lá de dentro duas cervejas. Abriu o armário e retirou dois copos de vidro. Levou até Ana entregou o copo à ela e o encheu com o líquido amarelado e estupidamente gelado. Ana sorveu o liquido e soltou uma exclamação prazerosa.
-Nossa! Esta é das boas!
Mestre Salustiano sorveu o liquido e depositou o copo sobre a mesa, afastando antes os papéis e mapas.
-Agora vamos para o que interessa.
Ao dizer isso, ele tirou o copo das mãos dela e a levou para o beliche.
Ali se amaram até a exaustão.
No dia seguinte mestre Salustiano acordou e percebeu que Ana já havia partido. Ele havia pagado a ela dois contos de reis. Mas sabia que aquela morena de olhos verdes valia muito mais do que isso. Ela havia lhe proporcionado a melhor noite de amor que um homem pudesse julgar ser possível. Ele ainda podia sentir o calor dos braços da morena, as curvas do seu corpo o olhar de mistério diante do gozo.
Aquilo era mulher para nunca se esquecer.
No mesmo dia mestre Salustiano partiu deixando o porto e Ana para trás. Ganhou o mar, mas Ana e aquele porto ele levou consigo.
Ele era homem do mar, e, portanto, não tinha um porto seguro, todos os portos eram um pouco seus e de cada porto ele levava além de provisões e mantimentos algo a mais. No porto em que viu Ana pela primeira vez ele levou a imagem da mulher. Ele era homem do mar e ela era mundana, mulher de todos os homens, mulher do cais. Ele pertencia ao mar e Ana pertencia ao mundo.
Naquele ano mestre Salustiano havia estado em diversos portos em diversos pontos do Brasil, mas sabia que algo o chamava para o porto de São Francisco, litoral de Santa Catarina onde ele havia deixado Ana.
Enfrentou tempestades, enfrentou maré alta, Iemanjá quase o carregou para a terra do sem fim por diversas vezes, ele mesmo achou que não fosse conseguir. O netuno sofreu avarias durante uma tempestade e quase rompeu o casco, chegou a entrar água, mestre Salustiano que era homem solitário e tinha que dar conta do Netuno só tinha que contar com ele próprio e com Deus. O deus do céu e dos oceanos, Netuno. A Deusa o queria para ela, mas Netuno não permitiu e ele conseguiu abrandar suas águas e mestre Salustiano consertou o barco que seguiu seu curso.
Meses depois, ele voltou ao porto de Ana ansiava por aquela mulher, queria-te-la em seus braços, nem que por mais uma noite, nem para isso precisasse dar a ela todos os seus tostões.
Atracou o Netuno no porto de São Francisco, desceu para procurar por Ana, estava afoito e afobado, os olhos verdes daquela mulher não lhe saiam da mente.
Ele procurou por Ana, gritou seu nome:
-Anaaaaa!
Perguntou a outras mulheres da mesma profissão que esperavam os marujos na beira do cais.
-Não.
-Não.
Eram as respostas.
-Onde estará Ana? – perguntou-se uma duas, três vezes, milhares de vezes.
Permaneceu no porto por mais de uma semana, ele jamais havia estado em um porto por tanto tempo, jamais havia estado em terra firme por tanto tempo.
Cansado da busca ele estava prestes a desistir quando encontrou o vestígio de Ana.
-Você que está procurando por Ana? – indagou uma mulher que também era da vida.
-Sim. Sabe onde ela está?
-Sei. –respondeu.
-Pode me levar até ela?
A mulher meneou a cabeça negativamente e disse:
-Ela está morta. Foi esfaqueada por um marujo.
-Morta?
-Sim. Ele a matou e jogou seu corpo no mar.
Mestre Salustiano, sentiu as pernas cambiarem e o estomago se revirou.
Vomitou, sentia-se fraco, sentia-se preso a um mundo que ele não queria estar neste momento.
-Por quê? – foi o que conseguiu falar após um momento em que voz finalmente saiu de sua garganta ainda fraca ainda roca, um fio de voz. Jamais nestes quarenta anos ele havia enfrentado uma tempestade ou avaria, ou qualquer fenômeno que o deixasse naquele estado lamentável, como a morte de uma prostituta que ele havia amado, talvez como jamais amasse mulher alguma. Ela agora estava morta, fora jogada ao mar.
-Não quis pagar.
-Ela ameaçou cortar ele com um estilete. Ele tirou o estilete das mãos dela e a degolou.
-Eu lamento...
-Não lamente Ana não suportava ser da vida, talvez a morte a tenha libertado de tal fardo.
-Eu a podia ter libertado. – disse.
-Homens como você, apenas vê em nós um pedaço de carne que vai saciar a fome do corpo e nada mais. Acham que não temos alma e que não somos capazes de amar, mas somos. E Ana amou. Amou de verdade um marujo que a levou para o seu barco e pagou dois contos de reis.
-O nome? – indagou apreensivo.
-Salustiano. – respondeu a mulher. Ela disse que se ele quisesse levar ela com ele ela iria e nem cobraria um centavo para passar o resto da vida ao seu lado. No mar.
Mestre Salustiano deu as costas para a mulher e saiu andando. Voltou para o Netuno e partiu naquele mesmo dia. Ana o amou e ele amou Ana.
O amor entre eles foi instantâneo, assim como suas paradas no porto da vida.
Ele era um homem do mar e no mar morreria. Nos braços de Iemanjá com as bênçãos de Netuno.
Ana também foi atirada ao mar e com ele seu coração. Mestre Salustiano resgataria sua alma e a levaria consigo para sempre, aonde quer que fosse ela o seguiria em seus pensamentos.
FIM!
Autora: Patrícia Mackowiecky Carpes.