O português e a ditadura

O ano era 1976. Havia doze anos desde que acontecera o golpe militar. Acreditava-se que o pior já tinha passado. A situação de tumulto dos anos sessenta parecia ter acabado. As pessoas comuns continuavam tocando sua vidinha simples, porém decente. Trabalhavam, estudavam, divertiam-se, consumiam, tudo dentro de suas possibilidades. Claro que nem tudo eram flores. Cada um ia carregando sua cruz do jeito que podia, mas sem nunca perder a fé e a esperança num futuro melhor.

E assim faziam Narciso e Gilberto, dois jovens tenentes da gloriosa Marinha brasileira. Narciso era do tipo vaidoso e prepotente. Muitas vezes tirava proveito de situações de tal modo que Gilberto chegava a colocar em dúvida o seu caráter. Eles eram casados com uma médica e uma professora, respectivamente. Nas noites de fim de semana reuniam-se na casa de um deles, para um bom joguinho de cartas. Numa dessas noites, Helena, a mulher de Narciso, comentou que estava necessitando pagar uma promessa, e que deveria cumprir o prometido o mais rápido possível. Sugeriu então: - Que tal irmos amanhã até Porto das Caixas*? Se sairmos daqui bem cedo, poderemos pagar a promessa e depois ficamos com o dia livre para almoçar, passear, e, sei lá, aproveitar o dia.- Sheila, mulher de Gilberto, concordou de imediato.

Tamanha era a empolgação das duas, que os maridos não ousaram discordar.

A Viagem

Narciso e Helena acordaram cedo, fizeram um rápido desjejum e partiram para pegar Gilberto e Sheila. O percurso do Rio de Janeiro até Porto das Caixas*,deve ser feito no máximo em uma hora e meia.

Ainda não passava das oito horas e já alcançavam a ponte Rio Niterói. O carro de Narciso era novo - um fusca do ano-, equipado com um som de última geração.

O toca-fitas emitia o som dos primeiros acordes da música de Benito de Paula, cantor brasileiro sensação daquela época; todos curtiam aquele momento.

*Ponto turístico/religioso no Estado do Rio de Janeiro.

Narciso arrastava o carro vagarosamente pelo lado esquerdo da pista.

“Quem quer dirigir devagar, deveria estar na direita” - pensou Gilberto consigo mesmo -. Helena também percebera a situação, mas resolveu ficar calada, pois sabia que se falasse alguma coisa, poderia iniciar uma discussão com o marido.

Ainda na ponte, a alguns poucos metros atrás de Narciso, vinha um outro carro, que era conduzido por “seu” Joaquim. Este, como o próprio nome sugere, era um senhor de nacionalidade portuguesa. Tratava-se de um homem vivido, com um bom pedaço de estrada já percorrido. É bem verdade que tinha passado por maus momentos na vida: os anos de ditadura em Portugal, a perseguição dos militares, a fuga para o Brasil, a adaptação a um novo tipo de vida num país estrangeiro, o dinheiro escasso, até fome tivera que passar em face das dificuldades financeiras . Mas o que importava mesmo era o presente, a vida agora parecia ter mudado; os negócios iam de vento em popa, e nesta manhã em especial haveria de fechar mais uma boa venda com os patrícios lá de Niterói. Não fosse por aquele carro a dirigir morosamente a sua frente impedindo-lhe a passagem, afastado esse pequeno contratempo, tudo corria as mil maravilhas.

E a travessia da ponte prosseguiu.

Narciso continuava dirigindo lentamente pelo lado esquerdo da pista e “seu” Joaquim buzinava insistentemente, pedindo passagem.

E lá se foram os quatorze quilômetros de ponte nessa birra.

Narciso, dentro de sua vaidade de pressuposta autoridade, já que era oficial da marinha, não poderia ceder para um civil. Seria humilhante demais para ele.

“Seu” Joaquim, acostumado a cumprir o que determinavam as leis, seguia fielmente as regras de trânsito:-”sempre ultrapassar o veículo a sua frente, pelo lado esquerdo, jamais pela direita”-.

Mas, ao aproximar-se da praça do pedágio, não teve dúvidas, ultrapassou o carro de Narciso pelo lado direito. Pagou rapidamente a taxa de pedágio, e parou mais adiante, junto à polícia rodoviária, para dar queixa das irregularidades que Narciso vinha cometendo.

O policial sinalizou para que Narciso encostasse seu veículo junto ao recuo.

Percebendo a situação, Narciso desceu do carro empunhando sua carteira de oficial da Marinha e, falando em alto e bom tom, se manifestou: -“Porque eu sou oficial da marinha, porque eu faço e aconteço e......”- . Antes mesmo que alguém dissesse algo mais, “seu” Joaquim, desanimado, exclamou: “então já ganhou!”- falou, quase que admitindo ter perdido aquela causa. Afinal de contas, o sujeito era militar, a ditadura ainda vigorava e não ia ser ele, um civilzinho qualquer, que iria conseguir que o policial lhe desse razão.

Mas, nem tudo parecia estar perdido. Mesmo estando em condições de inferioridade hierárquica, o policial rodoviário perfilou-se, prestou continência ao oficial e educadamente falou: “tenente, o senhor é quem, mais do que ninguém, justamente por ser um oficial da forças armadas, deveria dirigir seguindo as regras do trânsito e dando bom exemplo para todos.”

Daquele dia em diante, o “seu” Joaquim começou a ter certeza de que o fantasma da ditadura, que tanto tinha atormentado sua vida, estava com os dias contados.

Passaram-se ainda mais uns dez anos para que esse fantasma abandonasse definitivamente a vida de “seu” Joaquim.

Dizem por aí, que o referido fantasma foi localizado, tempos depois, perturbando a vida das pessoas em algum outro país latino-americano.

Beto Guimarães
Enviado por Beto Guimarães em 24/07/2008
Reeditado em 22/11/2008
Código do texto: T1095999
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