(baseado numa história real)
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     Eu posso dizer que naquele dia acordei estranho. Estava mal humorado, ansioso, e impaciente desde o momento em que me levantei de minha cama.
Não era comum eu acordar assim. Sempre acordava bem disposto, sorridente, e faminto por um café da manhã que só minha avó e minha mãe conseguiam preparar.
     Neste dia, estranhamente, nem fome eu sentia. Não tinha paciência e nem vontade de sentar-me à mesa com meu irmão mais novo, vovó, minha mãe e meu pai para tomarmos café. Ao invés disso, fui direto para o banho.
     Enquanto escovava o dente e deixava a água da torneira escoar ralo á baixo, fiquei encarando minha imagem no espelho cheio de pequenos círculos de ferrugem que mostravam a idade avançada do armário embutido à minha frente. Nesse instante, senti um frio tomar minhas costelas. Nesse instante, suei frio como nunca havia suado antes. Minha visão ficou turva por alguns segundos, segundos suficientes para que eu perdesse o ritmo das escovadas. Parei o movimento da escova de dentes vermelha- escura e respirei fundo. Procurei através do espelho se havia algo que pudesse me causar tal desconforto. Só eu estava no banheiro.
     Continuei fazendo minha higiene bucal e, também, disfarçadamente abaixei um pouco minha cueca e comecei a urinar dentro da pia. Sei que parece uma tremenda falta de higiene, porém eu já havia me acostumado com esse procedimento. Era mais fácil, mais confortável do que curvar meus um metro e oitenta em direção ao vaso sanitário logo ao lado. Sem contar que era divertido e me causava uma enorme satisfação assistir a água corrente tomar uma coloração amarelada, às vezes até alaranjada e depois ir perdendo tal coloração conforme eu ia parando de mijar.
     Foi então que mais uma vez, o frio na espinha voltou. Foi então que me sentei no vaso. Senti cada pêlo do meu corpo se arrepiar quase que instantaneamente, começando pelos pés, passando pela região pubiana e por fim, chegando ao topo da minha cabeça. Comecei a sentir aquela terrível sensação de estar sendo observado.
     Vesti minha bermuda que, momentos antes, eu havia pendurado no porta-toalhas e saí do banheiro apressado. Corri para meu quarto e me tranquei por lá. Deitei-me na cama. Uma brisa invadiu o local, por um momento confundi a tal brisa com o calafrio, porém vi que estava enganado pois logo o calafrio voltou. Um frio esquisito. Um arrepio estranho. Era possível ouvir sussurros ao pé do meu ouvido. Pude ter certeza que alguém sorria. Um sorriso que se confundia com o som que as cobras fazem mas que por agora me falha à memória.
     Saí do quarto. Passei pela cozinha. Peguei um pedaço de bolo de laranja que minha mãe já havia separado sobre um prato de plástico azul. E saí de casa pela porta dos fundos. Fui para o trabalho.
     Morávamos numa vila residencial muito simpática, no subúrbio do Rio de Janeiro. Era uma vila com cerca de doze casas, sendo todas essas casas sobrados, e com uma família por andar. Era um lugar tranqüilo, bem movimentado. O problema era que, bem atrás da vila, havia uma pequena favela. E como em toda favela, às vezes ouvíamos durante as madrugadas, e somente durante as madrugadas, alguns pipocos de tiros. Tiros que na maioria das vezes, segundo amigos meus que moravam na favela, eram disparados apenas para testar as armas.
     Os bandidos dessa favela não eram muito procurados. Os caras só se preocupavam com suas roupas de marcas, motos envenenadas e em levar garotas para seus barracos e usufruir do poder que seus fuzis e pistolas quase nunca usadas lhes proporcionavam. Às vezes eles saíam da favela de moto e ficavam rondando em volta da pracinha sobre suas motos e com as armas pro alto. Os moradores mais antigos quase tinham ataques, principalmente às sextas-feiras, dia que eles geralmente escolhiam para fazer esse desfile. Mas os mais jovens já haviam se acostumado, sabíamos que eles só queriam aparecer. Tudo bem que era perigoso, afinal, se algum carro de polícia resolve passar pela pracinha nesse exato momento e assiste o desfile de armas e motos, a troca de tiros poderia causar mais vítimas do que poderíamos imaginar.
     Minha mãe e meu pai não gostavam que eu fosse para dentro da favela. O problema era que a maioria dos meus amigos morava dentro dos becos dessa comunidade. Os poucos que moravam na vila eram chatos, mais novos, ou namoravam garotas metidas a patricinhas. Nunca tolerei patricinhas. Outro problema que me levava a passar por dentro da favela era que ela, na verdade, também servia de atalho. Por exemplo, se eu resolvesse ir até a locadora de filmes, por dentro da favela eu chegaria rapidamente, em uns cinco minutos. Se eu fosse pela avenida que era paralela a rua onde ficava localizada a vila, eu não demoraria menos que quinze minutos. Eu andava tranquilamente por dentro da favela. Passava pelos bandidos, pela boca de fumo, e nunca tive problemas. Claro que nunca contava aos meus pais por aonde eu ia. E nem aonde era a locadora, pois também ficava situada dentro da favela. Era simplesmente mais fácil e, no curto caminho, eu ainda podia cruzar com algum colega meu ou ver aquelas meninas vestidas de pequenos pedaços de pano que elas chamam de saia, shorts e blusas.
     No trabalho, eu esqueci dos calafrios. Quando você é operador de telemarketing, sua cabeça fica voltada toda e somente para as ligações. Você só consegue dar atenção aos clientes chatos e reclamões que aparecem durante o período de seis horas em que você tem que falar igual a robôs e escutar todo o tipo de insultos, sem o direito de reagir e apenas concordando.
     Ao fim do expediente, eu estava exausto. Esperei o elevador impaciente e suando cada vez mais. Entrei no elevador e fiquei encarando o teto espelhado. Lembrei-me que era sexta-feira e desci todo o percurso pensando em qual filme eu alugaria para passar o final de semana em casa. (Haviam dias em que eu queria simplesmente me isolar).
     Saí do prédio onde haviam mais de vinte empresas dedicadas ao atendimento telefônico. Junto comigo outras dezenas de pessoas saíram juntas. Era engraçado ver aquele monte de jovens falando normalmente, como pessoas comuns e não como robôs programados para serem irritantemente educados e prestativos.
     Finalmente entrei no ônibus. Parecia que finalmente eu estava tendo um pouco de sorte, pois encontrei um assento vago. Que nada! Quando me aproximei uma enorme poça de vômito me encarava sobre o banco e esparramada pelo chão. Teria que seguir de pé até minha casa. Os calafrios voltaram.
     Uma hora depois, e após uma discussão do motorista com um vendedor ambulante que gritava demais, finalmente cheguei ao ponto aonde eu devia descer caso quisesse ir à locadora. Dois pontos antes do ponto em frente a vila. Desci e encarei a entrada da favela. Engraçado como as coisas são. Algo me dizia que eu tinha que esperar um pouco mais para entrar na favela. Eu parei bem na porta. A favela tinha diversas entradas, porém esta era a que ficava mais próxima da locadora. E eu fiquei ali,estatelado. Sem ação.
     Não sei por que, mas eu senti mais uma vez aquela sensação de estar sendo observado. Os sussurros ao pé do meu ouvido estavam insuportáveis. Senti-me um louco. Como naqueles filmes de terror em que o personagem é cercado por almas e estas, começam a sussurrar e sorrir em volta dele. Eu me virei e não havia ninguém. Entretanto, eu sentia que havia alguém me espreitando. Olhei novamente e nada.
     Os pêlos do meu braço esquerdo se encontravam completamente eriçados. Os calafrios estavam começando a ficarem insuportáveis.Corri até a locadora e peguei qualquer filme na sessão de lançamentos. Por incrível que pareça e por descuido da menina que começara a trabalhar no dia anterior lá, acabei alugando “Premonição”, de 1999, ou seja, não era bem um lançamento, pois já estávamos em 2005. Mas eu bem que queria assistir de novo a aquele filme. O achava legal. Um jovem prevê a queda do avião que levará uma galera da sua turma para a França. Só que ele acorda e vê que tudo é um sonho. Muito impressionado, ele faz um escândalo no avião e, os que acreditam na sua premonição saem do avião, não menos assustados. Enfim, o avião decola, cai, e uma a uma as pessoas que saíram do vôo vão morrendo por mortes impressionantes e criativas.
     Peguei o dvd e saí da locadora. Algo me dizia para eu ir por fora da favela. Algo me dizia que eu devia ficar pelo menos mais um pouco ali na locadora. Sei lá, que puxasse algum assunto bobo com a menina de feições japonesas.  Porém, resolvi sair apressado e seguir por dentro da favela mesmo. Nunca havia acontecido nada comigo, não seria justamente naquele dia que algo iria acontecer.
     Mais tarde, eu entenderia o motivo dos arrepios.
     Caminhei pela rua reta. De um lado ao outro eram casas de tijolos ligadas por paredes finas e com imensas ligações clandestinas de fios que saíam desta ruía principal e adentravam pelos diversos becos. A rua era asfaltada nessa época. Hoje não sei, faz tanto tempo. E pelas estreitas calçadas as crianças brincavam com pipas, carrinhos ou pulavam elástico. De todo modo, parecia mais um dia tranqüilo na favela. Estava escurecendo, e a movimentação era grande pelas ruas. Havia pessoas chegando do trabalho e crianças chegando da escola. Meus pensamentos voavam. Fiquei pensando o que poderia ser aqueles calafrios estranhos. Aqueles surtos onde minha vista começava a escurecer e rapidamente voltava ao normal. Os sussurros. As risadas que lembravam o som das cobras.
     Foi então que de repente, escutei um estampido. Após ele, mais estampidos. Senti algo passar próximo ao meu ouvido o que deixou um terrível zumbido que parecia se expandir para dentro de minha cabeça. Acordei dos meus pensamentos e pude ver ao longe, dois policiais se aproximarem portando fuzis e apontando na minha direção. Minha reação foi de medo. Eu  não sabia o que fazer. Os policias vinham em minha direção. E eu ali, parado. Escutando os tiros passarem próximos a minha cabeça.
     Eles gritavam. Pediam para que nos jogássemos no chão. Mas eu não conseguia me mover. Como se um carro que vem na direção de um coelho na estrada e ele não se move por achar aquela luz dos faróis fantástica. Eu não via nada de fantástico ali. Apenas sentia medo. Então, em um ato de reflexo, me joguei para dentro de uma pequena loja de conserto de celulares.
     Dentro da loja, outras pessoas se escondiam esperando o tiroteio passar. Fiquei escondido, agachado atrás do balcão de vidro onde alguns telefones esperavam seus donos vir buscá-los. Enquanto controlava o meu medo, fiquei escutando os comentários das pessoas. Umas pareciam simplesmente não se importarem com os tiros do lado de fora. Era como se aquilo fosse completamente normal e logo,logo passaria assim como uma chuva de verão. Outros tinham medo, e gritavam a cada novo estampido e grito dos policiais lá fora. Pude escutar paralelamente, a conversa do dono da loja com seu filho ao telefone. Ele dizia que estava tendo um tiroteio muito forte na favela e que era para o menino continuar onde estava, seja lá onde fosse. Achei bonito aquilo.   Aquela preocupação. Mostrou que nem todos ali achavam os tiroteios algo do dia-a-dia.
     Fiquei um pouco mais tranqüilo. Levantei-me um pouco e fui até a porta da loja esperando o momento certo de correr até a minha viola que estava a poucos metros de distância. O dono da loja continuou falando ao telefone. E, foi nesse momento, que os calafrios voltaram. Não sei como, mas acho que nesse momento eu pude sentir a sensação de ter a cabeça quente. Pois a minha começou a ferver. Senti aquele frio na espinha, os pêlos se eriçando, a visão escurecendo por alguns segundos e a insuportável angústia, acompanhada de uma pressão sufocante no peito. De repente, ouvi um estampido mais próximo e, após o barulho, uma nuvem de poeira com pequenos pedaços de concreto caiu sobre minha cabeça. Um vulto preto passou diante dos meus olhos. Eu suei frio. Um fio de alta tensão se balançava agora, bem na minha frente.  Pulava como se tivesse adquirido vida.
     Alguns policiais correram para longe do fio. Outros apenas se afastaram um pouco e recuaram até suas viaturas estacionadas quase em frente a minha vila. Queria tomar coragem para correr para os braços da minha mãe. Senti-me inseguro naquele instante.
     O dono da loja, um rapaz forte de uns trinta anos, se aproximou da porta. Comentou algo sobre aquele fio ser perigoso. Muitas crianças estavam paradas em volta do fio saltitante. Eu, ao notar que os policiais se recolhiam e se preparavam para ir embora. Saí pelo canto da loja e caminhei da forma mais apressada que podia, apenas não querendo demonstrar medo, ou que os policiais encarassem minha atitude como se eu devesse algo.
     Andei até chegar a minha casa em segurança. Ouvi mais alguns tiros, porém estava tranqüilo, deitado no chão do meu quarto fazendo abdominais.  Os sussurros vieram mais uma vez até que de repente, as luzes de todo o bairro se apagaram. Já estava anoitecendo e ficamos às escuras. Ouvi um grito. Logo as luzes voltaram. E da janela da sala de minha casa, pude ver algumas pessoas correndo em direção a avenida. Forcei um pouco a vista. As pessoas carregavam alguém. E esse alguém parecia desacordado.   Rapidamente, e com uma atitude completamente de fofoqueiro, desci correndo as escadas e fiquei parado na porta da vila esperando as pessoas passar.   Quando depositei meus olhos sobre a pessoa desacordada, levei um susto e, mesmo não a conhecendo bem, fiquei entristecido.
     Carregado estava o homem da loja de celulares. Caído, e juro que pude ver fumaça saindo dele. Mais tarde, descobri que na tentativa de tirar o fio dançante do caminho das crianças, ele cometera a burrice de pegar o fio nas pontas. Imediatamente foi lançado a metros do chão, batendo com sua cabeça no meio fio. O que provavelmente ocasionou sua morte. Foi a primeira vez que tive contato com aquele homem. A primeira vez que eu entrei naquela loja que antes mal existia para mim. Justamente nesse jogo de primeiras vezes, uma vida foi tirada.
     Hoje antes de dormir estava lembrando deste dia. Estava me lembrando e pensando em como tudo parece previamente escrito para nós. Como um roteiro de uma grande minissérie real. Aqueles sussurros? Aqueles calafrios?   Será que não seria algo, alguma coisa, ou alguém querendo me tentando avisar do perigo pelo qual eu passaria? Alguém querendo me deixar preparado pelo que eu presenciaria naquele dia?
     Só sei que até hoje acho estranho. Até hoje estranho o fato de, no meio de um tiroteio, no meio da tarde (coisa que nunca acontecia), uma vida inocente fosse tirada não por um tiro, mas por um fio arrebentado por uma bala perdida. E se tudo aquilo estivesse destinado a mim? Não seria minha vez de morrer, porém algo mudou minha trajetória? Ontem, sem querer, matei uma barata com os pés. Teria sido mesmo sem querer? Quer dizer, eu não tive esta intenção. Mas será que aquilo não deveria acontecer mesmo? São coisas desse tipo que me fazem pensar se somos responsáveis pelos nossos atos. Se realmente existe o tal livre arbítrio.
     Existindo ou não, acho que eu hoje sei o que ocasionou aqueles calafrios, aquela ansiedade... Acho que foi a morte. E, sinceramente, na loja de celulares, quando ouvi o pobre falecido falando com a que seria a última vez que conversaria com seu filho, eu tive a impressão de que havia uma força misteriosa pairando o local. Algo que me perseguira durante quase todo este fatídico dia. Só esperando eu cruzar o seu caminho.
     Eu tive a certeza de que a morte... Estava lá.


Fim.
Fael Velloso
Enviado por Fael Velloso em 24/07/2008
Reeditado em 07/01/2012
Código do texto: T1094841
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