GALINHA TORRADA COM FAROFA
Para suavizar o peso do ano letivo e mitigar os rotineiros dias provincianos, recebíamos de presente, de tempos em tempos, recheios de civilização. Eram as tão esperadas excursões com destino às lindas praias do nosso litoral. Íamos a Pirangi, Muriú e muitos outros cartões postais da “terra brasilis”. Uma dessas excursões, portanto, não dá para esquecer. Foi para a praia de Tambaú, na cidade de João Pessoa, no Estado vizinho ao nosso.
A turma da pesada, todos alunos do Ginásio Comercial de Santa Cruz, não se recolheu para o repouso noturno e bebeu madrugada adentro até chegar a tão esperada hora de partir. Às três horas de domingo, o ônibus conduzido por Manuel do Ônibus, estacionou na praça Coronel Ezequiel defronte às casas de Furtado e Chico de Juca, tradicional plataforma de embarque da linha regular Santa Cruz-Natal.
A viagem foi divertida. Não faltaram a charanga com seus instrumentos de percussão e o violão de Estevam que acompanhava as músicas dos anos 60, cantaroladas sempre que a turma da percussão fazia sua pausa intermitente. Na bagagem levávamos, como todo farofeiro que se preze, provisões diversas: sanduíches, doces, pães, soldas, broas, carnes, farofas, arroz e até o feijão nosso de todo dia que, para alguns, era indispensável.
Durante o percurso bebiam umas e outras e tira-gosto não faltava, pois todos os excursionistas levavam consigo os seus mantimentos, que eram consumidos à medida que se sorviam bicadas de aguardente.
Lembro que Jaelson de Pedro Lucas retirou de uma lata, a maior que compunha o conjunto de “porta-mantimentos”, uma enorme coxa de galinha torrada que deixou a todos com água na boca. Bebeu da pinga e saboreou a galinácea acompanhada de uma farofa macia e cheirosa. Lembro, também, que o aroma suave e sugestivo despertou a fome de todos, enquanto despontava no horizonte os primeiros raios dourados que anunciavam um novo dia de sol e mar. A charanga entra em cena: Miguelão, Manuel de Pedro de Tico, Antônio Luiz de Zé Dobico e Tino atacavam de forró à moda de Jackson do Pandeiro. Os últimos dos dorminhocos já estavam espertos, de olhos bem abertos. Estávamos em João Pessoa.
O ônibus se aproximava da praia, pois já se podia ver ao longe o azul do mar que se destacava entre casas e árvores. O cheiro de mar começava a ser sentido pelos alunos que se aglutinavam nas janelas para melhor apreciarem a paisagem.
Ao chegarmos a Tambaú, todos pegaram as suas bagagens e foram procurar um lugar mais discreto e seguro para acomodá-las. Miguelão e Manuel, no entanto, estavam atentos aos movimentos de Jaelson ou mais especificamente no “porta-mantimento” que continha a galinha torrada e farofa.
Jaelson, consciente de que detinha um tesouro e devia preservá-lo também tomava as suas precauções. Olhava em todas as direções para certificar-se de que os seus passos não estavam sendo seguidos, até que acomodou a sua preciosidade num local discreto e longe dos olhares pedintes. Não sabia, todavia, que a uma distância discreta os seus movimentos estavam sob os olhares acurados dos caçadores de Tesouro.
O que aconteceu você pode imaginar. Miguelão e Manuel de Pedro de Tico encontraram e subtraíram do local secreto o farto banquete que passou a harmonizar as garrafas de aguardente e ornamentar o domingo de Miguelão e seus comparsas em Tambaú.
Não demorou e Jaelson, disfarçadamente, encaminhou-se para o seu esconderijo. Após um banho de mar, estava na hora de tomar mais umas bicadas com galinha torrada.
Cuidadosamente, e sempre olhando para trás e para os lados, Jaelson resgata o seu almoço. Enche o copo com uma generosa ripada de pitu e, logo em seguida, coloca o “porta-mantimentos” preso sobre o peito, em posição de abrir sua tampa apertada. Aberta a tampa, mas sem saber que havia sido roubado, Jaelson com fineza e educação oferece um pedaço de galinha aos amigos que, já sabendo do acontecido, se aproximavam ansiosos para ver a sua reação quando perceber que não há no recipiente um só pedaço da penosa.
Jaelson bebe uma dose dupla, faz uma careta de espantar vampiro e diz feliz: “Para tirar o gosto desta cachaça forte, só uma galinha torrada feita por mamãe” e enfiou a mão no recipiente.
Com a mão submergida numa camada densa de farofa, Jaelson procurava no fundo da vasilha por um pedaço de galinha. Explorava o fundo da panela, rodopiando com os dedos sem nada encontrar. Sentiu, porém, algo sólido, “pero non mucho sólido” e retirou-o, certo de ter encontrado um bom pedaço de galinha.
No entanto, só ao levantar o seu troféu é que se deu conta da sacanagem de que fora vítima. Era merda. Merda com farofa. O Cocô de Miguelão que além de roubar a galinha ainda obrou dentro da panela.
Jaelson, que já esboçava um suave sorriso de deleite, inverte o seu humor, mudando repentinamente o seu semblante, assim como o homem que se transforma em lobisomem nos parques de diversões armados nos dias festivos, no Largo da Matriz, e precipita-se em prantos, desses prantos sofridos.
A turma, sapiente do acontecido, sem a menor compunção, ria sem parar. A vida é assim: Alegria de uns, desgraça de outros.