Me dá um sapato aí...
Todos riam do meu calçado. Também, quem mandou estudar em colégio de rico? Tive que emendar o ¨kichute¨ - um modelo pré-histórico de tênis de pano com solado de borracha espetado por cravos que imitavam chuteiras e faziam a alegria da meninada. Ter um kichute era o máximo, antes de ser desbancado pela Rainha, Adidas e depois os gloriosos Nike.
Fui para a escola certo de que a fita adesiva passaria incólume pela minha distração. Deveria ter saído com meu pai para comprar um novo, mas me esqueci de avisá-lo. Improvisei uma fita adesiva emendando o rasgo construído em peladas incansáveis de futebol.
A escola era colossal. Muros de cimento cinza erguiam-se em volta nos isolando do mundo cão. Era o mais conceituado dos institutos católicos. Sou do tempo em que boa educação se construía sob a rigidez das normas sacras, conforme acreditavam nossos pais. As famílias começavam a degenerar, a ditadura ruía por desgaste natural, os comunistas viram que a União Soviética não estava dando certo e um desencanto se espalhava pelas veias vermelhas. O mundo mudava e eu ali, remendando tênis quase com chiclete.
Tínhamos que carimbar a carteirinha escolar à entrada. Os bedéis trabalhavam: pam, pam. Carimbos ágeis nos obrigando a tomar cuidado com os dedos e evitar um esmagamento de que nunca soubera. Já na fila o primeiro dissabor:
- Olha o kichute dele! – crianças de outras salas, e algumas que não conhecia, caíam em riso. Até o bedel riu e não deixou de tirar sarro com a cara do riquinho besta:
- Teu pai ¨tᨠpobre? Coitado!
Vergonha pouca é bobagem. Se fosse um cara descolado, tiraria de letra. As humilhações seguiam no correr do dia. Fizeram até uma ¨vaquinha¨ na sala para me ajudar a comprar um tênis novo. Conseguiram juntar doze centavos e dezenas de piadas. Um professor condoeu-se me lançando olhar tristonho. A fita adesiva em determinado momento descolou deixando aparecer as meias pretas e, como resultado, mais risos:
- O chulé dele vazou! Socorro – risos, risos, risos...
Queria esconder-me abaixo do nível do chão. Na hora do recreio fui à forra e atrevi-me a jogar futebol. Muita gente sempre rodeava a quadra empoleirando-se nas grades e em uma arquibancada de 12 degraus. Até as meninas ficavam ali com a desculpa de lanchar para nos observar. O alto prédio de um lado e árvores de outro faziam generosa sombra ficando apenas um pequeno corredor ao centro da mesma.
Os jogadores riam da minha situação. O esperto que eu era, ao invés de tirar o kichute e jogar descalço, arriscou tudo. No primeiro chute o calçado voou partindo-se em dois: a situação tornou-se insustentável. Os risos metralhavam-me de todas as direções. Tirei o calçado e joguei com os pés nus. Arrebentei e fiz dois gols, o que me dava glória e devolveu algum respeito. Antes do fim da aula, como estivesse com um pé só, um dos professores me chamou à porta da sala.
- Alguém esqueceu e nunca mais buscou – exibiu-me um par de kichute quase novo que deixaram por lá. O número serviu. Sorri e agradeci triunfante. Voltei para a aula sentindo-me leve e os colegas olhavam com cara de assombro ou despertos pela piedade.
Não ouvi mais gozações durante o dia, voltei para casa com peito inchado lembrando-me dos meus dois belos gols. Assim que meu pai chegou implorei por um novo tênis.
- Traga-me o seu, ordenou. – trouxe-lhe os que ganhara. Ele olhou e decretou:
- Ainda estão bons, vão durar algum tempo... – fiquei sem jeito de dizer que seu filho se beneficiara da caridade alheia e, sem coragem de expor meu ridículo, convivi com aquele kichute com chulé alheio até que as evidências do desgaste justificassem uma nova aquisição...