Pequenas Histórias
                           do Povo de Minas


                                                      Contos do Compadre Lemos

1 - Menina e Flor

No beira do caminho de casa para a bica, debaixo da jaboticabeira grande, ela achou de nascer. Nasceu, assuntou o mundo - quintalão imenso! - exalou seu humilde perfume de florzinha do mato quase sem nome e esperou.

Tardezinha, sol morrendo, a menina veio, cantando baixinho, aboiando seus sonhinhos lá dela, sorriso feliz nos olhos pretos. A mão arrancou a florzinha com delicada firmeza, ajeitando-a depois, no cabelo liso.

Cabelos pretos, pele morena, vestido de chita, corpinho despontando, nos seus doze anos de pura inocência: a menina.

Miudinha, de vivo amarelo, pétalas pequeninas, perfume suave, como a tarde que se deitava lentamente: a flor.

E se foram as duas, pelo caminho, alegres de serem menina e flor, para a festa!

Mês de junho, no Sãoluiz, beira do Maruin de águas claras. O frio, a menina, a festa e a flor. Por aqui, o senhor não queira mais: a vida é simples!

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2 - A Derrdeira Morte

As armas todas, nas mãos. Cruzando os peitos, bandoleiras recheadas de certeiras balas, morte a caminho.

No pescoço, o Bentinho feito e recomendado por Nhô Tenório, do Lajedão. Corpo fechado e refechado, às trancas, Deus esteja!

Parou no meio da praça, olhos em tudo, corpo retesado de urutu, para salto e bote.

Rangeu a porta do casebre à esquerda, o mínimo. Cano de fuzil divisado na greta, momento último. Sozinhas, quase, as armas espoucaram tiro e morte, num átimo.

O pé na porta esburacada, voando pedaços pra dentro de casa. Na sala minúscula, o corpinho estendido:

-- Valei-me, Sâo Jerômo! Matei foi um anjo!...

Sinhô Madureira baixou as armas e, vez primeira, chorou. Diante dele, o menino Jeremia, último a morrer no ataque dos jagunços à Vila do Bem-Será, fundo do Norte mais norte de Minas, no Brumado-de-Cima.

O Menino Jeremia, oito anos, cego de um olho, agora, só corpo.

Dizem que Sinhô Madureira endoidou e vaga, ainda hoje, pelas estradas do Brumado, pedindo perdão a todos que encontra. Astúcias do Demo? Que seje!... Ou, quem sabe, a mão de Deus!...

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3 - Fortuna

Dinheiro contado, recontado, guardado pra tempos piores. Homem rico, diziam, mas miserável de dar dó!

Aos empregados, quase escravos, de paga, só o prato raso do dicomer, o brim tosco, sempre igual para as roupas comuns e couro no lombo, por qualquer motivo.

Ele, gordo, sempre, largas calças, prefundos bolsos.

Os cangaceiros chegaram, tomaram, em silêncio, o pátio da casa grande. Um tiro sequer não foi preciso, que resistência não houve.

-- Sua gente, moço, cadê? Fugiram? Perguntou o Sôr Chefe, com desprezo.

-- Pelo amor de Deus, Sôr Capitão, não me mate! Eu tenho dinheiro!

-- Dinheiro tu tinha, cabra. Agora tenho eu mais meu povo. E viver, tu não merece. Se tu prestasse, seu povo tava era aqui, morrendo no seu lugar!

A cusparada acertou em cheio o rosto de Nhô Jão Terêncio, conhecido pelo povo como Jão Mizera. Cuspe e lágrimas, misturados, na hora derradeira.

E o Capitão, com voz imperiosa: -- Sangra, que, com esse, nao compensa gastar bala!

Pois o senhor assunte: até pra morrer, carece dignidades!

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4 - O Menino

O senhor veja e nunca duvide, maior seje a vontade: milagres acontecem! O Sertão é caixa deles, feito marimbondos abespinhados, de tantos e tão estranhos. Uns escondem, outros comentam, entre padrenossos ou t'esconjuros, os causos. Assunte mais um:

Mortos pai, mãe e irmãos, por questão de terras, ficou sozinho no mundo o Menino. Três anos, tão-somente. No dia do fato, quiseram matar, pra não deixar rasto. Julião, Sôr Chefe dos jagunços, contrapôs severa ordem: não matasse, não, nunca! Era anjo, ainda. E anjo é de Deus. Vivesse!

-- Deixa aí. Deus faz o que for servido! Nos certamentes. Acataram todos a ordem. Abaixo do Coronel, o Sôr Chefe era e era, nos poderes de mando.

Queimaram casa e pasto, saquearam, levaram os de valor, partiram.

O Menino, engatinhando, chorando alto e sentido choro, afundou-se no Sertão. Sumiu de um todo, nem-notícia, nuncamaismente!

Um dia, voltou. Homem feito, jagunço, bem armado, urutu nas coragens e o Demo, na esperteza.

Um por um, exterminou todos os viventes da fazenda Flor D'Água, do Coronel Lindolfo Pontes, ex-vizinho e atual proprietário das terras do falecido pai. O último a morrer foi justamente ele, o Coronel, mandante da antiga chacina.

Só um ficou vivo, para contar a história: Nhô Julião, o Sôr Chefe. Minutos sem fim, na mira do rifle do Menino, esperou morte. Veio perdão:

-- Vai-te embora, Moço! Te devolvo a vida que me salvou um dia. Nada mais te devo!

Agora... sem toleima, o senhor me diga: como escapou, como sobreviveu na caatinga, o menino de três anos? Como soube da história, separando, nela, devedores e credores, nos acreto de contas, dia do Juízo Final?

-- Mistérios?... Eu, cá nas minhas ignorâncias, reputo: milagre! E é e é, Deus esteja!

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5 - Os Sapos

Estavam lá. Casa deles, na certa, que outro mundo nem não atinavam de existir. A lagoa, suas águas, seu frescor, seu silêncio, seus dias mornos, suas noites calmas.

Eram sapos, os dois, um casal. Na muda linguagenzinha lá deles, vai ver, diziam amores, recordavam coisas, faziam planos, mesmamente fossem gente, que a vida é uma só.

Só que...

Silenciosa, feito serepente traçoeira, ela veiovindo, chegou mansamente, achou morada, ficou, tomou conta. Seca terrível, de sol carrasco, tudo condenando e matando, aos poucos, no ferozmente, sem de per si dar alarde, soturna.

Lagoa? Virou saudade. E saudade, no Sertão, é poeira vermelha. Homens tristes cavaram buracos, cada vez mais fundos, água cada vez mais pouca, salobra, gosto de morte perto. Ela, a Da-Cara-Feia, com a seca veio, com a seca ficou, só recolhendo os pobres, porque rico foge a tempo.

E os sapos, lá. Imóveis, no canto escuro, na fria pedra, só assuntando.

Seca cansou de matar e se foi, tardia e silenciosa. Mas demorou-se, a Morte. Deus teve pena? Mas nem, não!

Veio chuva, muita, demais de assombros! As enchentes!

Água levou boi, levou casa, levou gente, pro nunca mais, adeus! E os sapos, lá, mergulhados, esperando a água baixar.

Água baixou e os sapos, verdes de limo, quietos, pensativinhos, no mesmo lugar.

É que sapo de jardim é feito de pedra e não tem vida. Mas também não morre! Só fica e espera.

Eu, por mim, queria era ser um deles, no silêncio deles, na calminha deles, sem pulsar, sem viver, sem sofrer e sem morrer!

Mas sou só um serhumano gente, castigo de Deus, louvado seja!

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06 - Odara

Pela sala pequena do frio apartamento ecoa a voz do apresentador:

-- Tirem as crianças da sala! São cenas chocantes! A realidade nua e crua, com exclusividade, aqui na Rede....

Ergo os olhos do jornal de ontem, por dois segundos. Um corpo estendido na calçada, sem o clássico jornal cobrindo-lhe a cara, perdoem-nos João Bosco e Aldir Blanc.

Tá lá, o corpo estendido no chão. Criança, quase, completamente nu. Quinze anos, se muito, negro, descalço, crivado de balas, boca aberta, mostrando falhas na dentição imprecisa.

Sobre os olhos - só sobre os olhos! - a fina faixa preta. Menor.

Pessoas passam, só olham. Às vezes, nem!... Só o repórter magrinho, de terno preto, tenta, desesperadamente, fazer, daquilo, notícia.

Volto à leitura: onde é mesmo que eu estava?...

De repente, algo me incomoda: por que, às duas da tarde, um corpo estendido na calçada não chama mais minha atenção? Por que me parece tão ridículo o repórter que tenta, sem sucesso, ligar-me ao fato? Por que essa vontade de estar milhas e milhas distante daqui, para não ter nada, absolutamente nada, nem mesmo a consciência disso? Quem sou eu?... O que sou eu?... Em que me transformei?...

Sinto fome. Levanto, desligo a televisão e vou cometer mais um furto: uma chícara cheia de café com açúcar - sou diabético - e algumas bolachas recheadas. Dane-se!

No rádio da cozinha, eterna e solitariamente ligado, Belchior canta:

"Mas trago, na cabeça,
Uma canção do rádio
Em que um antigo compositor baiano me dizia:
Tudo é divino, tudo é maravilhoso"

Lembro-me, então, que esse mesmo antigo compositor baiano, um dia, escreveu:

"Deixe eu dançar
Pro meu corpo ficar odara!
Minha cara,
Minha cuca ficar odara!

Deixe eu cantar
Que é pro mundo ficar odara,
Pra ficar tudo jóia rara,
Qualquer coisa que se sonhara:
Canto e danço que dará."

Adianta chorar?...

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7 - Infância - O Inhãntes

( Inspirado em "Grande Sertão: Veredas", de João Guimarães Rosa )

Calado, pensativo, ensimesmado, lá com ele só e sempre, o Menino. Era filho do senhor da Fazenda Nova, nos Moirões. Não tinha amigos. Nãomente que fosse ruim, malardiloso, não. Era só calado. Só sozinho, e gostava assim. Assim sêsse!

Tinha era olhos de pensar, o Menino, cismarento sempre, de falar menos que o trivial:

-- Dia, dona. Bença, Pai. Bença, Mãe, Dscajuda! Chove?... E só.

Gostava mesmo era de andar estreitos carreiros, por dentro da matinha. Tardava horas, só assuntando. Canto de pássaro, sabia todos, imitava todos, de vir na mão. Matava o que? Olhava, estudava, catava piolho nas cabecinhas trêmulas e soltava, num gesto largo de quem devolve tesouro.

Perigos, na mata, nenhum não temia. Inexistiam. Pisava cobras, de mansinho, e elas nem, não. Caititu brabo, de por homem velho no pau, com armas e os todos adereços de caçador, era cavalo seu. Montava, redeava lá com os joelhos nas ancas. Juntos viajavam, serrindo, duas crianças, ele e o bicho-fera. Onça pintada, quantas, não viram lambendo sua mão, nas amizades?

E as flores, como gostava! Com elas falava, sempre, chamando é de comadre:

-- Comadre Dália tá uma formosura, hoje! Benzô Deus!
-- Tristinha causo de que, comadre Margarida? Olha o sol!
-- Larga de ser enxerido, Seu Cravo! Dissonha de comadre Rosa!...

E, se ria, se ria por dentro, sozinho, jeito lá dele.

Mas o que mais lhe encantava era o rio. Todo dia, chuva ou sol, sentava nas barrancas e ficava tempos, tardes enormes, sonhando saudades. Saudades futuras, do que haveria de vir, nas demoras. O rio trazia, o rio levava, indovindo, o rio era a porta do mundo! Sonhava o rio, sua porta, sua estrada, seu destino... Um dia!...

Um dia, sumiu. Não mais que se ouviu dizer dele, o menino esquisito, calado e sozinho, dos Moirões. Só depois, muito depois do fim da guerra, é que vieram dar a notícia: diz que tinha morrido em combate, fogo fechado, em mão-de-faca com um tal Sêo Hermógenes, preposto do Demo, no Paredão. Diz que Morreram os dois: o Cão e o Anjo.

-- Adeus, Diadorim!

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8 - Porteira Fechada.

Dizquefoi: Sôr Clemente Xavier, o dono da Sete Pedras vendeu tudo, no derrepente, porteira fechada, no papel passado, lavrado e assinado no cartório de Quinquinha, no Jenipapo.

Negócio tratado e feito, num só dia, que dinheiro compra até tempo.

Motivo? Motivos? Sei dizer não senhor, vida lá dele, soberana decisão. Só sei que vendeu.

Fazendão de fazenda, com casa-grande enorme, alpendre e sótão, onde, dizque até fantasma tinha. Curral de gados, pastos, mangas, engenho e moenda, monjolo. Riquezas!

Carros-de-boi, mais de dúzia! Milharais, arroz nos brejos, feijão na flor, ermos de lavouras! Os todos cafezais! Bois de serviço, de corte e corrida. Vacas de leite, mundão de crias. Tudo!

Vendeu vendido, que dado não dava, à vista recebeu. Barato, até, dizem, mas no dinheiro. Daí, pegou a estrada, pra que nortes não se sabe, não se diz. Ganhou o mundo, sumiu pro nem-notícia, pro nuncamais. Foi.

Comprador, felizardo, deu, tempos depois, de trocar o piso do casarão e assentar modernas lajotas desenhadas, como se tapete fosse. Daí, surpresas!

No chão do quarto, em cova rasa, duas carcaças de gente humana. Uma de homem grande, negro pela carapinha ainda divisável. Outra, mulher, vestida em rico traje, princesa, quase.

Foi-se ver, investigar, polícia veio, volantes, até as desfardadas, da Capital, de gravata. Exames fizeram e perguntas. Depoimentos tomaram, de medrosa gente. Descobriram: ele, o morto-homem, vaqueiro Zé Altino, negro enxerido e metido a bom de tudo. "Toda mulher é pasto, meu bom! Duvido uma!" Despautério!

Ela: Sinhá Dilurdes, esposa santa e recatada, no dizer do povo, até aquele dia. Da cidade grande viera, já casada com Sôr Clemente - "Meu-Bem" ela dizia - para ser a dona da fazenda.

O que houve, o que não houve, os comos e os porquês, traição só pensada ou consumada, uma ou quantas vezes, só duas pessoas sabem: Sôr Clemente, o viúvo, hoje morando no ôco do mundo, e Deus.

Mas Deus Se deixa ficar quieto, no céu lá dEle. Ele Não Se mete em sujas histórias.

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9 - Urbano

No Indalé, pra lá do Sonjerôme, na virada da Serra do Macuco, nasceu o último dos doze filhos de Zé Malino. Pretinho, magrinho, chorão de estufar umbigo, pirracento toda vida, assim foi, enquanto criança.

Jandira, a mãe, morrera no parto. Zé ficou só, com a filharada, mas não desistiu. Sozin eu num tô. Tóca pa frente!

Veio padre, naquelas bandas. Magotes de meninos e meninas foram batizados, num só três-dias, tempo que demorou a Missão, por ali. Costumes. Zé levou o menino-mais-novo para batizar também, temente a Deus, no estreito.

-- Nome?

-- Urbano, sim senhor.

-- Urbano? Causo de que?

-- Achei bonito, uai. Vi num omanaque, nome importante. Doutor Urbano!

-- Que seje! Urbano de que?

-- Sei não sinhô! Eu num tenho registo...

Ficou Urbano Silva, para não ficar Urbano de Tal. Silva, o sobrenome do avô materno. Nâo tem tu...

E Urbano - Banin, para todos - cresceu por ali mesmo, como lá se diz: escapou. Pegou corpo, uma ruma de nêgo, no orgulho do pai. Um dia, quanto já estava para fazer quinze anos, sem aviso, perguntou:

-- Nhô Pai, meu nome quer dizer o que?

-- Sei não... Joca da Venda me falô isso, há muito tempo. Diz ele que Urbano quer dizer "quem que mora na cidade", ou "aquele que nasce na rua"... sei direito não.

No dia seguinte, Banin tinha fugido, levando apenasmente o que considerava de seu: a roupa do corpo, nada mais. E pra nunca mais!

Hoje mesmo, eu o vi. Ele estava "fechando o caixa", terminando o expediente da sua cadeira de engraxate, na Central do Brasil.

Estranho, luminoso mesmo, o brilho em seus olhos, ao contar as moedas e notas de um real. Eu ainda ouvi, enquanto passava por ele, a exclamação de pura alegria:

-- Quaje quinze real!... Beleza, cumpade!

E felicidade tem preço?...

                                   
Compadre Lemos
Enviado por Compadre Lemos em 03/06/2008
Reeditado em 02/08/2010
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