CB GUERRA

A menina virou-se para perguntar onde era a Rua Arcanjo Medeiros, mas o carro já tinha perdido a direção, atravessado a calçada, arranhado um poste pra terminar por entrar em choque com o corpo da menina. E parou, depois de mais dois rodopios na parte final, para findar em posição natural do fluxo, como se estacionado tivesse sido. E talvez conseguisse até enganar, não fosse o estado deplorável do quadro ao seu redor que fora pintado, com corpos enlameados de tristeza e dor. O guarda de trânsito, atônico, ficou imóvel por segundos antes de reagir à mensagem que o cérebro lhe enviara há segundos atrás, e pegou o rádio pra pedir reforço. “Cabo Guerra, na escuta? Cabo Guerra, central na escuta?” E, mal esperando o sinal positivo de retorno da Central, “Situação de emergência. Código beta dois cê, preciso de ambulância. Na escuta, Central?” Era o primeiro caso grave que tinha acontecido naquele primeiro mês de efetivo em viaturas. É bem certo que entrara para a corporação há quase três anos, e fizera o treinamento no estágio, mas sempre em situações criadas, sempre sob supervisão. Depois, Cel. Carvalho, muito amigo de seu falecido avô por conta dos cultos religiosos que passaram uma vida em confidências, deu um jeito de arrumar um belo de um emprego dentro de órgão administrativo, e lá se vai o Cabo Guerra pra fora das ruas, como assim preferia que fosse, sempre. Mas a corporação mudara de controle, e depois da morte do Cel. Carvalho as coisas pareciam desandar por ali, e não se sabia se era por conta da liderança política que mudara de partido, ou se era a falta mesmo que Cel. Carvalho fazia por aqueles arredores. Então, Guerra foi à rua, nos piores turnos e ocorrências. Numa delas, quando uma velinha gritava dentro de casa e sua vizinha, assustada, chamou a polícia, Cabo Guerra pensou que bem poderia pegar algo mais emocionante, quando chegou e encontrou a velhinha bêbada e caída no chão da sala, uma garrafa de Martini Del Bianco pela metade, sem tampa, virada no sofá, e o som ligado no volume máximo, em plena duas horas da madrugada. O pior não era o trabalho de não se ter trabalho, mas o peso que a velhinha fez nas suas costas, depois de carregar uma escada íngreme para chegar ao quarto da Senhora, de pô-la num canto mais digno para que repulsasse seus sonhos. Naquela hora tinha lembrado de Dona Nancy, e como faria o que fosse para subir quantas vezes fosse aquela escada, mas não visse mais gente morta nos seus pés. E ele, sem nada poder fazer, a não ser controlar a multidão (que mais parecia formiga) que se formara ao redor. Pulsação zero, como imaginara. Enfim, o reforço chegou, a ambulância levou os corpos, o carro foi tirado do lugar e a multidão dispersou-se. E outra chamada tinha sido anunciada no rádio. Mas a cena pura de tristeza não se apagou da memória do Cabo Guerra.

(Códigos, personagens e narrativa de conteúdo fictício, com simples intuito literário)

Ie
Enviado por Ie em 30/05/2008
Código do texto: T1011483