A ESPERA DA MORTE

COMPORTAMENTO – 5:00h da manhã; Fulano da Silva acorda, caminha 5 km em revolvo da Lagoa Rodrigo de Freitas, retorna para seu razoável apartamento em Copacabana, come frutas frescas e cereais; sai para o trabalho e só retorna as 19:00h se o trânsito permitir. Fulano da Silva é mais um daqueles executivos inteligentes que se formou numa boa universidade pública, pós-graduou-se na Inglaterra e fez NBA na Fiocruz.

Fulano da Silva ocupa um bom cargo numa multinacional que vende aço, ganha R$ 1,2 milhões por ano, tem apartamento de cobertura, carro importado na garagem, freqüenta academias da elite da Zona Sul, 40 e poucos anos, solteiro, têm conta corrente no Chase Manhattan, cartões de crédito sem limite; namora a Patricinha de Souza, aquela loirinha ninfeta que metade do Rio de Janeiro já desejou tê-la na cama e duas vezes por ano ele viaja para a Europa e Caribe, para relaxar e sair do estresse brasileiro. O moço não fuma, não bebe álcool e só se alimenta de acordo com os padrões mais naturalistas que se possa imaginar.

Semana passada Fulano da Silva foi ao médico fazer exames de rotina e queixou-se ao Doutor de uma “dorzinha” de nada na altura da virilha e quando encaminhado a fazer exames de praxe, descobriu que tinha um câncer maligno no estômago e que as células cancerígenas já havia se alastrado por todo aparelho digestivo. Em suma, o moço sarado e bom partido, com um futuro promissor havia sabido como um “raio” que teria dia e hora para morrer, e o pior, aquele dia e hora estaria bem próximo. Estava começando então o mais cruel dos jogos; o jogo entre a vida e a morte, aquele que provavelmente nada poderia mudar as regras e o curso do final.

Milhares de pessoas todos os dias vivem de certa forma a mesma sensação desgraçada e infeliz que Fulano da Silva; seja por meio de um acidente grave automobilístico; por meio de uma doença terminal; por intermédio de um assalto onde o algoz promete e cumpre a execução da vítima; seja por um suicídio. Milhares de pessoas se vêem diante da oportunidade de conhecer o outro lado da vida; alguns com um pouco mais de tempo; alguns sem tempo nenhum; todos com a mesma certeza, de que vai morrer em breve!

A morte é uma conseqüência natural de qualquer vida; plantas, animais e pessoas, nascem, crescem e morrem, mas ninguém que esteja ou pense que esteja saudável não fica praguejando contra a vida, nem mesmo os pessimistas; todos nós que possuímos alguma atividade normal, temos a esperança de que ficaremos velhinhos, cheios de netinhos ao redor, com cachecol em volta do pescoço e cabelos brancos. Ninguém fica soltando aí aos ventos que vai morrer, estando (ou pensando estar) bem de saúde e com a vida “arrumada”.

Meu avô nasceu em 27 de fevereiro de 1910, fumou pouco de deixou ainda jovem o vício; bebeu uns tragos, mas também aboliu o álcool de sua dieta antes de completar 50 anos. Nasceu e sempre viveu na roça, no meio do mato, no Sertão da Bahia; comeu a vida inteira aquilo que suas mãos produziram e desta forma encontra-se até hoje, aos 98 anos. Meu avô, Judicael Pamponet Pires possui nenhuma lucidez, mas ainda anda sozinho e em “raios” de memória, fala de assuntos de 80 anos atrás; enterrou todos os irmãos e agora também espera a morte chegar; está na fila dos que farão a passagem; mas pelo menos meu avô já não sabe mais o que é vida, nem morte.

Existem milhares de pessoas a espera de transplantes de órgãos; milhares de outras nas filas da hemodiálise; milhares e milhares que sabem que são portadores do vírus do HIV; dezenas de homens preparando bombas para serem presas ao próprio corpo; centenas de suicidas arquitetando suas ações; milhares de pessoas esperam uma sentença de morte nas cadeias sombrias; homens, mulheres e crianças que sabem que a morte está por chegar e não podem mais fazerem nada. A loteria da vida segue na própria vida de todos, mas alguns sabem bem que não passarão muito tempo; e o que sentem estas pessoas?

Ninguém pode imaginar o que sente alguém com plena consciência quando se está diante da morte. Certa vez em Ilhéus, eu contava vinte e poucos anos, uma alemã que vivia uma “affair” comigo me chamou para banharmos nas águas agitadas das praias desertas da cidade, mas eu não sabia nadar (até hoje não aprendi). Ela entrou na água, mergulhou e tirou a parte superior do biquíni; de longe acenou pra mim e chamou-me... Eu, bobo e com vontade de sentir-me ainda mais homem, pensei que pudesse enganar as águas e entrei no mar; o resultado foi uma cena dantesca de afogamento. Os poucos minutos de agonia me pareceram anos; entre o beber muita água e tentar sobreviver à fúria do mar; eu assisti ao filme da minha vida; vi anjos e demônios e juro; pensei que fosse morrer.

Tirando por mim mesmo, que vivi em desespero a presença da morte algumas vezes, fico imaginando o tipo de pensamento que estes infelizes nutrem nos poucos dias que lhes restam e me incubo de proporcionar alguns conselhos, sobretudo para os mais jovens, que devemos viver intensamente cada dia, sem os excessos que maltratam o caráter e só deixam nódoas para nossas biografias, fazendo-nos sofrer e levando neste mesmo embalo os que nos amam. Preservar a vida é uma necessidade, mas quando ela demonstra sinais claros de ausência próxima e não encontramos plausibilidade para buscar um remédio, temos que ter a hombridade de recomeçar a viver, estudar conceitos e proporcionar alegrias; rir muito pode ser um remédio de alívio aparente, mas funciona a tal modo que os que estão do nosso lado nem perceberão o que está acontecendo.

Cada um de nós, mesmo os que estão com os dias contados, devemos nos incumbir de traçar uma nova rota para a pouca vida que ainda nos resta; mesmo os saudáveis e seguros, mesmo estes possuem pouca chance diante de um mundo tão cruel, portanto é hora de pensar mais, agir mais, rir mais, compreender mais, fazer melhores ações para dar ainda mais esperança para se poder viver.

Se eu pudesse, mataria a morte, extinguiria a desgraça, riscaria do mapa a doença, acabaria com o preconceito, mas não posso sequer escrever desta forma, para não basflemar contra o Criador, portanto, me resta ter o poder da escrita; o poder da sensibilidade quase extinta, para tentar me colocar na pele de quem tem a morte batendo a porta e com alegria dizer por escrita que temos o dever de viver e fazer o bem, sempre, sempre...

Carlos Henrique Mascarenhas Pires

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