Primeiro de abril

BsB, 01/04/08

Grande amigo! Quanto tempo, quantas mudanças, quantos abismos entre nós, quantas horas deixadas para trás sem que possamos um dia re_buscá-las!? Sei que lhe devo algumas explicações pelo breve sumiço, mas nada é justificável, pelo menos de minha parte. Eu vou bem: cada dia mais rico e bonito. Espero que você esteja neste mesmo patamar, nesta mesma conexão. O que nos une, não são as palavras mas os infinitos silêncios onde nos abismamos.

Sempre lhe disse que um dos meus maiores presentes é ter seu e-mail disponível em minha caixa de mensagens para, quando desejar, lhe mandar novas e velhas notícias. Como hoje é o dia da mentira, tentei elaborar algo mirabolante para lhe pregar uma peça, mas quem acabou caindo do cavalo fui eu. Veja que minha amada deu-me de presente um livro de Italo Calvino, escritor nascido em Cuba - amante das “Cidades Invisíveis”. As quais, segundo ele, não são poucas. Mas, também fala das que são absolutamente concretas e reais. Diante de um dos “passeios” por suas cidades, constatei que a nossa Capital Federal também é semi-invisível. Só hoje ao levantar-me para uma caminhada, me deparei com esta dura realidade. Jamais havia percebido que o trajeto que faço em todas as minhas andanças é absolutamente diferente. Acho até que nunca passei pelo mesmo lugar, pela mesma calçada, pelos mesmos vizinhos, ah, os vizinhos! Acho até que nem os conheço, todos são diferentes, distantes. Os cumprimentos são difusos, uns mais amigáveis outros nem tanto. Mas não sei exatamente se fui eu quem mudou ou se foram eles, quem sabe, ambos mudamos? Só nos resta saber se para melhor ou pior. O mais estranho é que moramos na mesma quadra desde nossa quase infância, isto pode lhe parecer um absurdo ou até mesmo uma mentira que ainda não foi contada por nenhum de nós.

Quando havia percorrido hoje alguns metros: talvez uns duzentos ou seiscentos, ou até mil, sei lá quantos, foi que percebi que minha sombra caminhava comigo, ela seguia sempre à frente, na mesma toada, no mesmo compasso; só que vez por outra, mudava de lado: ora para a direita ora para a esquerda, dependia do rumo que eu tomava. Só que a direção que eu seguia variava conforme as ruas que se apresentavam à minha frente e que, infelizmente, não combinavam com a minha vontade, mas ainda assim, me deixava levar. Até que, inconformado, depois de muito andar dei meia volta, como se ouvisse uma ordem superior... Marcha! Minhas pegadas estavam todas distribuídas cuidadosamente no chão. O vento ainda não havia realizado seu trabalho matinal, parecia que hoje, exatamente no dia da mentira, estava meio preguiçoso. Talvez curtindo o belíssimo “céu de brigadeiro” deste primeiro dia do mês. Mas como eu estava dizendo, dei meia volta, nisso notei que aquelas pegadas, mesmo deixadas por meus pés, já não eram mais minhas, elas, agora, representavam o passado, já não me pertenciam, seus significados já não eram os mesmos de antes. Eu tentei caminhar sobre elas, seguindo passo a passo, mas aí percebi que meus pés estavam trocados, não havia como pisar exatamente sobre elas, se o fizesse teria que voltar, ainda assim, creio que não daria mais certo pois certamente a sombra que me seguia naquele outro momento, já não era a mesma de antes. O tempo havia mudado e minha sombra agora estava sob minha cabeça, já não era mais possível vê-la como fazia antes. Eu e minha sombra éramos naquele instante, a mesma pessoa, ou a mesma coisa, algo quase inútil. Estávamos um dentro do outro, muito embora já não dialogássemos como da outra vez, quando ela caminhava à direita ou à esquerda, firmemente. Depois de um certo tempo, já estafado, constatei duramente que minha sombra queria me deixar: agora ficava para trás. Não dava a mínima importância ao trajeto de minha arquitetura matinal, o qual havia preparado especificamente para esta jornada (...minto! Esse trajeto, esses rabiscos, sei decor e salteado, pois os faço constantemente em meus trotes e divagações costumeiras).

Às vezes penso que minha sombra é a parte concreta da minha mente, parte esta, expandida e qualificada: a alma do Pedro. Isto me deixa perplexo pois o significado das palavras toma um outro designio, uma outra dimensão. Assim, começo a imaginar que nós também somos invisíveis e até mutantes, na medida em que cada um se diferencia do outro. Suspeito que não nos conhecemos, que nunca nos vimos e se nos vimos, foi de relance, foi quase sem querer, foi como se apenas nos víssemos literalmente: eu Pedro, você Pedra, ela, minha amada, Amante. Acho que vou expulsar Calvino da minha cabeça, já estou ficando maluco. Na rua onde moro está escrito: casa 15, Pedro Cardoso.

Meu amigo, você poderia passar sem esta, mas desculpe, hoje é primeiro de abril!

Abraços,

Pedro Cardoso DF
Enviado por Pedro Cardoso DF em 02/04/2008
Reeditado em 05/12/2022
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