NA SEXTA-FEIRA SANTA - 2
NA SEXTA-FEIRA SANTA - 2
(Ivone Carvalho)
“Sexta-feira da Paixão. A Sexta-feira Maior. Mais dois dias e termina a quaresma.
Lá fora está chovendo, a exemplo do que tem acontecido quase todos os anos nesta data.
E eu estou aqui, querendo escrever alguma coisa, pois já faz alguns dias que não faço isso, mas estou sem vontade, ânimo e inspiração. O sono não vem, já fiz uma limpeza no computador para liberar memória, li alguns e-mails mas, confesso, não senti disposição para responder os poucos que merecem ou necessitam resposta. Tentei reduzir o volume da caixa de entrada lendo rapidamente algumas mensagens dos grupos de discussão mas, como a maior parte delas me remete a links para leitura de novas leis, jurisprudência, doutrina, decisões, enfim, como se referem ao meu trabalho, também não senti vontade de prosseguir e, por isso, estou aqui.
E vim para cá para tentar distrair a minha mente, pois sei que se for para a cama ficarei pensando no que não devo pensar e então é melhor tentar falar de outras coisas, já que, também aqui, os meus pensamentos convergem para o que não deveriam convergir.
Enfim, antes que esse nó que estou sentindo dentro de mim acabe comigo um pouquinho mais, resolvi fechar os olhos, recostando a cabeça na cadeira, ouvindo a chuva e me lembrei das Sextas-feiras Santas dos meus tempos de criança e início da adolescência, época em que não me lembro de chuva neste dia!
Bateu a saudade! Não mais aquela saudade que minutos antes formavam o nó que já mencionei, mas uma saudade muito distante, de tempos e pessoas que não mais voltarão a ser vividos por mim.
E me vi na quinta-feira, Dia de Lavapés, em que eu jamais perdia a missa das oito horas da noite, permanecendo na Igreja até o início da madrugada em Vigília. Para mim, essa sempre foi a missa mais bonita do ano. Na Igreja de Nossa Senhora do Loreto, que ficava pertinho de casa, doze coroinhas ficavam sentados no altar aguardando pelo momento em que o Padre João lavava os seus pés simbolizando o ato bíblico e depois percorria a Via Sacra. Durante muitos anos foi o Padre Aristides (que deixou o celibato, se casou e tem filhos), que me fazia vibrar todas as emoções dessa data.
No dia seguinte eu me levantava bem cedo e ia novamente para a Igreja, desta feita para a Confissão. Havia sempre uma fila imensa, mas eu não desistia e sempre voltava para casa apenas para almoçar a salada de batatas com bacalhau (muita batata e pouco bacalhau!) da mamãe (que eu adoro até hoje), pois às três horas da tarde eu fazia questão de estar de volta para uma celebração que acontecia nesse horário e ali ficava mais uma hora e meia mais ou menos.
A rotina desse dia a partir das quatro horas da tarde era tomar um banho, vestir-me e esperar pela tia Ana que, antes de cair a noite, vinha nos encontrar para que todos juntos fôssemos acompanhar a procissão que dava a volta em todos os bairros vizinhos.
Aguardar a tia Ana era, para mim e meus irmãos, José Antonio e Edson, uma grande alegria. Ficávamos prontinhos e rodeávamos a mamãe implorando que nos deixasse abrir nossos ovinhos de Páscoa para comermos os chocolatinhos que os recheavam. Eu disse ovinhos porque eram ovinhos mesmo! Minúsculos! E tinha que ser assim para que cada um de nós três pudéssemos ganhar um. Cada um de uma cor, assim não corríamos o risco de um comer o do outro e alguém sair prejudicado comendo menos chocolate. E cada um dava um pedaço para a mamãe, assim todos comiam, menos o papai que geralmente não queria.
E, quando a tia Ana chegava, após a festa dos cumprimentos, oferecíamos chocolate para ela que, bondosamente, não aceitava ou aceitava “apenas uma lasquinha” para que sobrasse mais para nós, para o domingo. Embora ela tivesse quatro filhos, somente o Luiz Carlos e o Antonio Carlos a acompanhavam sempre, e, raramente, o Alberto também. E o nosso ovinho, assim, ia ficando cada vez menor! Mas eu, o José Antonio e o Edson já combinávamos com antecedência: cada um de nós daria para um só dos primos, assim todos comiam e ainda teríamos chocolate para o domingo.
Fitas azuis, verdes e vermelhas fechavam as embalagens de cores variadas, e determinavam qual ovo pertencia a cada um de nós, para que na Páscoa os deliciássemos.
Tudo pronto? Então íamos todos para a Igreja onde assistíamos a uma representação teatral da morte de Cristo, ouvíamos a Verônica cantar mostrando à platéia a imagem de Cristo no Santo Sudário, chorávamos emocionados, comprávamos nossas velas e acompanhávamos a procissão que, como já mencionei, percorria todo o nosso bairro e os bairros vizinhos, chegando de volta à Matriz já na madrugada, por volta de meia-noite.
Ficávamos, então, ansiosos para conseguirmos entrar na Igreja que não comportava toda a população do bairro ali presente e, após algumas palavras do sacerdote, encerrávamos aquele Dia Santo com mais uma fila imensa, desta vez para ver a imagem do Cristo Morto.
A volta para casa em plena madrugada não causava preocupação nesse dia, pois parecia que o bairro inteiro estava na rua.
Aí a necessidade era de dormir o mais rápido possível, não só pelo cansaço de tanto andar acompanhando a procissão em meio às rezas e hinos que eram cantados em voz alta (bem alta e desafinadamente por alguns, ou pela maioria), mas, também, para não perdermos a hora de vermos a malhação de Judas no sábado de Aleluia.
Não creio que nesta minha cidade de São Paulo, passados quarenta anos, ainda existam procissões como aquelas que eu acompanhava e também acredito que poucas crianças, ou nenhuma, desta geração vivam a Semana Santa da forma como nós vivíamos.
Talvez eu esteja aqui relatando tudo isso porque já não posso usufruir do convívio do José Antonio, do Edson, da tia Ana, do Antonio Carlos e do Luiz Carlos, que há tempo se encontram no outro Plano, mais pertinho de Deus.
Quando os meninos eram vivos, sempre recordávamos esses bons tempos e cada um ia se lembrando de algum detalhe e tudo se transformava numa diversão nostálgica pois acabávamos nos lembrando de amigos da infância e da adolescência que já nem sabíamos por onde andavam.
Nossa! Demorei para escrever tudo isso! Na verdade eu não apenas escrevi, mas, a cada linha eu viajei um pouco no tempo, sorrindo, sentindo saudade dos fatos, dessas pessoas maravilhosas que tanto amo e já não posso abraçar, e, principalmente, de uma Sexta-Feira Santa como aquelas, já que hoje, a esta hora, eu já deveria ter assistido a Missa de Lavapés e, dentro de poucas horas, deveria estar indo para a Igreja para me confessar.
Hoje eu me confesso apenas com Deus, assim eu me sinto mais à vontade, porque Ele sabe quais são os meus pecados. E para Ele eu não preciso falar o que falei para um Padre quando eu tinha meus quinze anos, já cansada de repetir sempre os mesmos pecados que, hoje eu sei que não o eram na intensidade que eu supunha, eu disse apenas que pequei por pensamentos, palavras e obras. E respirei aliviada por ter descoberto a fórmula mágica para não ter que dizer novamente que briguei com meus irmãos, respondi para minha mãe e coisas desse tipo. Mas o Padre, muito mais esperto do que eu, lógico, perguntou-me incontinenti: - e quais foram esses pensamentos, essas palavras e essas obras?
Eu respondi; não tinha outro jeito! Mas, daí pra frente, o meu Confessor passou a ser apenas Deus! Com Ele eu me abro, eu reflito, eu medito, eu me arrependo, eu peço perdão, eu me penitencio, eu não tenho pressa!
Enquanto escrevi, a chuva parou. Mas agora está chovendo novamente.
Que esta Sexta-Feira seja realmente Santa!”
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O texto supra eu escrevi em 25/03/2005, às 05:30 horas.
Passados três anos, eu o reli nesta tarde de Sexta-feira Santa e, além da imensa saudade que ali mencionei, dos fatos, da época, das pessoas que já não convivem conosco porque partiram para o outro plano, sinto, também, uma incomensurável saudade do meu tão amado paizinho que, pela primeira vez, não estará conosco nesta Páscoa.
Que saudade, meu pai! Que vazio imenso você deixou dentro do meu coração e da minha vida!
Estas lágrimas, eu lhe peço que sejam recebidas não como de tristeza, porque sabe bem que eu jamais faria qualquer coisa que pudesse magoá-lo, entristecê-lo, decepcioná-lo. Nunca, em sã consciência! Se alguma vez o fiz, tenha certeza de que não foi minha intenção! E você jamais demonstrou ou mencionou qualquer palavra que me fizesse crer ou supor que de alguma forma o magoei alguma vez.
Entretanto, paizinho, estas lágrimas que ora não consigo controlar, peço-lhe que sejam recebidas sentindo o amor que transborda e sempre transbordou no meu peito, quando meus pensamentos se voltam para você. Sempre foi assim, não é pai? Sempre tive um medo terrível de perdê-lo e sabia, o tempo todo, o quanto minha vida mudaria quando você partisse. Que saudade, meu pai! A minha alegria é a certeza de que você está cercado de Amor e Luz e tão perto de Jesus! Brevemente estaremos juntos novamente e já sinto o calor do seu abraço e a alegria que sentiremos quando nos reencontrarmos! Sua bênção, paizinho! E que Deus abençoe a você e a todos nós, nesta Semana Santa, nesta Páscoa e sempre!
21/03/2008