Tô muito puto!
Porque ser hipócrita numa hora dessas não vinga. Ultimamente muitas perguntas deixam de ser respondidas porque sequer são feitas. E respostas se tornam tão escassas, mas tão escassas, que viver na ignorância se torna uma dádiva, e o senso-comum prevalece.
O falso moralismo prevalece? Sim. Eu respondo não deixando espaço para sua reflexão ou busca de argumentos porque seu falso moralismo também prevaleceria aqui, cá entre nós. Seus desejos são meus também; suas angústias são minhas, suas dúvidas, seu cansaço... Mas é bem verdade que os pronomes ‘meus’ e ‘minhas’ não fizeram efeito algum em você no momento. Quem sabe faça, outrora.
Não sei se o bom-senso tem vez nos dicionários, na Escola, no trabalho, no cotidiano, na política. O caso é tão grave e penoso que é melhor dormir e acordar fazendo de conta que a culpa não é de ninguém. Que a religião é obrigatória, que seu Deus tem obrigação, que sua fé é suficientemente forte para ignorar o bom-senso. E há quem diga que a fé é opcional, ou melhor, casual. Há quem use na hora que bem entender, o que não quer dizer que é preciso entender a fé para tê-la ou usá-la. Porque a fé se usa, oras.
Mas mudando de assunto. Eu tenho fé que a fé tem fé. Eu disse fé, e não fel, ou mel nem véu.
Parece que somos adeptos do Feísmo, e esquecemos do sangue dos escravos, dos agitadores, das pessoas intemeratas. Use o estro para a poesia, para o namoro, mas não para a alienação; não para intercalar um grito, não para o individualismo, não para as receitas fáceis de felicidade, dessas que encontramos em livros intragáveis intitulados de auto-ajuda, e auto no sentido de destruição e não concordância; não para a indiferença, rejeição, filáucia de mentes inanes.
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Faça-me o favor de não proferir injúrias ao me ler. Minhas palavras não são verdades absolutas, mas são dignas de serem levadas em consideração. Eu poderia afirmar que aqui, quem escreve não sou eu, é o meu eu-dramático. E assim qualquer besteira dita não levaria meu nome, mas qualquer justiça feita também não. O que, diga-se de passagem, não me importa. Eu tanto me calei quando era para falar, tanto falei quando era para calar e tanto parei quando era para andar. Mas tanto amei quando era para amar que os atos passados podem ser justificados. E justificados com fervor, porque ao ver uma injustiça eu ficava puto, e tão puto que reclamar e protestar não seria mais do que obrigação. Mas como não suporto obrigações, não reclamei tampouco protestei. E chegou a hora de fazê-lo porque ficar puto é diferente de ficar indignado.
Há inversão de valores, meu caro. O estudioso é o otário e o malandro é o esperto. Fazer amor é tão sujo quanto à pedofilia dos padres. E não falo de sexo, falo de amor. Porque sexo não mata a fome da África. Sexo pode até matar espermatozóides, veja você. Eu vejo pessoas que lacrimejam ao verem as imagens de um animal sendo maltratado na televisão, ou imagens de uma baleia morta na beira da praia; mas não lacrimejam quando vêem uma criança suja e faminta no centro da cidade, um sertanejo tendo que percorrer dez ou quinze quilômetros almejando dois baldes d’água, às vezes para toda a semana; há quem sinta pena de uma família debaixo da ponte, mas não há quem sinta revolta ao saber que a política é repleta de genocidas responsáveis pela miséria e morte de muitos. Repare o falso moralismo: seu vizinho condena o aborto dizendo defender a vida, e até participa de calorosos debates sobre o assunto, mas na hora de defender o estômago e o prazer de viver dos doentes de corpo e coração da América – Latina torna-se adepto do Feísmo.
E a velha frase diz que o Brasil é o país do contraste. E o Mundo? E a tua consciência? Aliás, antes tu tiveste consciência. Porque consciência é saber que a Constituição diz ser lei a Educação para todos enquanto os analfabetos alagoanos são tratados como meros números do IBGE, apenas e infelizmente...
Podemos até viver o Pós-Modernismo, mas o Pós-Modernismo do Barroco. Ou seja, o Pó-Modernismo. O Modernismo esfarelado, capenga. De maneira alguma; admiro Gregório de Matos, Aleijadinho; Porém, convenhamos não haver lugar para retrocesso. Nossos filhos aprenderam com os professores que a Literatura era um reflexo da sociedade da época. Mas que época? Que sociedade? Pinturas Rupestres das cavernas do Pará, para mim, são poesias concretistas. E que influência disto nós vemos nos poemas atuais?
Ora, meu caro. Todos são feístas. Poderia me dizer quem se organizou em pró de melhorias nas regiões secas do Nordeste após ler “Vidas Secas” de Graciliano Ramos? São raros, raríssimos ou inexistentes. E ainda tem a coragem de pronunciar algo do tipo “Eu fiquei sensibilizado com a situação daquela família retratada no livro Vidas Secas”. Ficou sensibilizado uma ova! Uma ova! Não me causaria espanto ler ou ouvir depoimentos de pessoas horrorizadas com o estupro da sua filha, e tempos depois fingir está com Amnésia. E os jornais serão rasgados. Todavia, rasgar esses jornais manipuladores até que não é má idéia. O povo não é informado, o povo é usado como cobaia de valores, meu amigo.
Eu já cansei de debater com meu pai sobre essas coisas. A nossa conversa me fazia achar que eu era um sonhador frustrado, enquanto ele era um pseudo-sábio. Hoje penso que eu sou um pseudo-sonhador enquanto ele foi um sábio frustrado. Mas enfim... Rememos!
Lembrei das ocasiões em que nossos filhos nos remetiam a conversas nas horas vagas. Conversas inúteis, eu sei, mas conversas são conversas. Meu filho me perguntou, há anos, o que era rancor. Precisei responder-lhe com uma tapinha na boca. Quando ele chegou de viagem, perguntou o que era rancor e eu respondi com umas tapinhas nas costas. Estes momentos têm relações tão íntimas quanto a alegria e o sorriso, quanto o sangue e a solução-tampão. Porque é assim que deve ser a relação entre as pessoas, um dia com um olhar furioso, outro com as mãos estendidas. Um dia você oferece as mãos para acariciar, outro você oferece as mãos para serem algemadas. Tomara que não confundam Sol e afélio com só e mistério.
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O Homem é neofobo, meu caro. Precisamos vibrar com o novo, mas agimos como estóico diante do novo. Não estou pedindo para ser o novo. Estou pedindo para estar no novo. Esteja no novo assim como um sujeito que está morto. Estar magoado é passageiro, estar morto, não.
Neofobia não nos leva a lugar algum, nem mesmo ao museu. E que tarefa inútil. O amanhã estará no museu da semana que vem, e a semana que vem estará no museu do mês que vem. Eu não garanto que o tempo anda para frente, mas até que me provem o contrário... Até que me provem o contrário eu continuo provando das coisas que me agradam. Provar da estupidez, da necedade não me agrada. E não me agrada o Feísmo.
Repare o meu falso moralismo: levei pouco mais de trinta minutos para redigir esta carta; neste mesmo tempo não fiz nada pelas tantas pessoas do Mundo que nestes trinta minutos morreram de fome.
Abraços do seu amigo.
D.L. Santos, 14 de Janeiro de 2000