Carta ao passado

Sei como deve ter sido difícil enfrentar a dura realidade e parir mais um ser humano no mundo. E, mesmo que imaginássemos ser possível, ser apenas atemporal, a história das circunstâncias e as mentalidades pintavam um cenário um tanto confuso, quando não cruel.

Quem escreve a carta, sempre fala num passado. Nem sempre distante, nem sempre remoto mas latente na alma de cada um de nós, a pedir atenção, zelo e alguma compaixão.

Ah! Como dói ser rejeitado, ser censurado, banido do país do afeto e jogado na sarjeta da indiferença. Onde a lama não suja, não encobre a mágoa e a lágrima que tatuam juntas na alma, dores inesquecíveis.

Sei também quem rejeita com certa contumácia, sofreu do mesmo mal. E, de certa forma, numa sôfrega tentativa de sobrevivência e defesa. Reproduz o ciclo satânico, sem perceber que multiplica as dores e, não espanta a tristeza da solidão.

Ah! Mas estamos todos sós. Morremos sós, é na solidão dos quartos fechados e dos velórios que a vida encontra exatamente a dimensão iníqua... Tempo vivido num história embaraçada.

Sei que ao escrever isso. Muitos não entenderam. Pensaram ser mais um texto eurudito com meditações metafísicas. Mas, ser mãe é mais que apenas pôr num mundo uma vida... É se comprometer a dar afeto,

a dar esteio e amparo sem nada esperar... É se desesperar ao ver o filho bambear diante do abismo, as vezes sem muito poder fazer...

E, quando faltam as palavras logo vem a enxurrada de lágrimas, a soluçar o que antes poderia apenas ter sentido, expressado ou simplesmente se permitido sentir.

Mãe sente medo. Mas quando mãe segura a mão de seu filho afligido, ela esquece o próprio medo e limitações, e se lança leoa e heroína em busca da segurança e da certeza da esperança ou do amanhã.

Mas mãe é ser humano, erra , peca e sente o pesar dos anos lhe subtrair das pernas a força necessária para a luta diária. Milhões de batalhas diárias são travadas pelas mulheres, é a jornada dupla de trabalho, é o cuidado com as crianças, os bebês que não sabem explicar sua dor e gritam, os maridos e parentes a lhe exigirem sem algo a mais. E, a sociedade a lhe cobrar exemplos, sobriedade e, sobretudo força. As vezes ser mulher significa não ter direito a fraqueza. Ou reverter sua fragilidade e sensibilidade em força bruta capaz como o diamante cortar rochas e vidros...

Hoje eu sei que deveria ter perdoado mais. E ter me permitido ver sua face humana, fora da cripta sagrada da imagem de Maria , ao pé do manjedora. Mas a minha busca ávida de afeto, a minha busca incessante de referenciais femininos e dóceis era mais frenética que qualquer tentativa de racionalidade ou bondade.

Hoje sei que se eu houvesse perdoado naquele tempo, talvez tivésssemos ficado mais próximas, menos egoístas e, portanto, capazes de repartir a dor, e quem sabe, num último lampejo, conhecer a afeição.

Mas a rejeição, o banimento, a dor de não pertencer a ninguém, de não merecer cuidados especiais... Só os chutes e as chibatas do destino marcaram não só o dorso. Mas, o rosto com tristeza infinda de olhos.Em retribuição, fugi de tudo. Parti irremediavelmente para o desconhecido, seguindo revolucionária numa guerrilha interna. Aonde sabia eu, que perderia. Pois eu duelava comigo, com armas desiguais e injustas.

Eu era jovem e tola. E, buscava ser amada.Amada por qualquer um, embora só desejasse o seu amor. Ser o centro das atenções que me foram negadas paulatinamente, diariamente. Para depois descobrir que não daria certo. Não há centro sem simetria.

As pernas que daqui fugiram , eram pernas de quem vai ausente e ressentida, e quer viver momentos capazes de aplacar o fato de não ter sido a preferida.

Ah! quanta tolice. Quantas vezes, secreta e silenciosamente me arrependi, e só voltei atrás, porque me rendi a imensa falta e vazio que ficou quando daqui parti.

Minha adorada, não importa que não haja amor para todos no mundo. E que nem todos possam dispor de amor suficiente. De comida suficiente. O pior mesmo é essa anemia de atenção... A discrasia das emoções doentes que ronda nossos corações.

Tudo que posso lhe escrever nessa carta, e lhe dizer por lamúrias infindas, é que existe um ombro amigo, existe um sorvedouro de mágoas tal como um aspirador de pó... Que joga no lixo as micropartículas de dores e agonias.. Trituradas pelos caminhos percorridos.

Tudo que posso escrever é uma carta ao passado. Pedindo a Deus que permita quem foi rejeitado e rejeitou, se redima. Tenha um insight e, numa lampejo de luz ou emoção, possa dar a mão, o suor ou a atenção a quem nunca deixou de esperar por um simples olhar do seu ente querido.

Mesmo que isso nunca aconteça. Venceu a esperança. Venceu a sensibilidade sobre a razão. Não se pode negar exatamente aquilo que tanto nos fez falta e órfão.

GiseleLeite
Enviado por GiseleLeite em 01/02/2008
Reeditado em 23/02/2010
Código do texto: T841768
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