Carta ao Sentimento de Posse (prelúdio: Libertação do machocrata)
Querida Posse,
Desde o berço, foste meu primeiro amigo imaginário. Na infância, coroaste-me dono absoluto dos seios de minha mãe; na adolescência, juraste-me senhor da primeira boca que explorei, da primeira fenda úmida que minha língua ousou conquistar. "Pronto, é sua", sussurravas, enquanto eu, embriagado de hormônios, acreditava que a vida se resumia a marcar território — entre gozo e mijo, entre desejo e domínio.
Mas agora, no prelúdio da maturidade, olho para trás e vejo: cada buraco que pleiteamos como "latifúndio da luz" era, na verdade, um abismo. Inflaste meu ego, ensinaste-me a colecionar corpos como troféus, mas não me deste as chaves para a verdadeira liberdade. Ah, Posse! Como és doce no início — um sabor duvidoso que excita a língua —, mas amarga na digestão.
Eis o teu jogo: dás poder, mas roubas leveza; ofereces segurança ilusória, mas cobras com solidão.
Transformas carícias em contratos, paixões em propriedades. E eu, teu cúmplice, ergui impérios sobre areia movediça — até o dia em que a vida me exigiu desapego.
Agora te pergunto: qual a tua real serventia? Será que o amor, em sua forma mais pura, precisa de cercas? Ou será que a tua sombra só me impede de voar? Reconheço: até nas vezes que fui eu o objeto, o brinquedo, você, minha eloquente cegueira, me fazia crer que eu ainda era o dono do jogo — pobre ignóbil egocêntrico, e foste necessário, como um estágio primitivo na evolução de um homem que confundiu posse com proteção, domínio com amor.
Mas hoje, desafio-te. Não à guerra, mas à
transmutação. Que o mesmo instinto que me fez cobiçar aprenda a libertar; que a mão que outrora agarrou agora acaricie sem aprisionar. A insegurança que me vendeste como "amor" era só medo de perder — e quanta beleza se perdeu nesse caminho?
Leitor, se também carregas essa sombra, olha para ela. Não a negues, mas não a deixes governar. O verdadeiro poder não está em possuir, mas em compartilhar; não em controlar, mas em confiar.
A maturidade, afinal, é isso: trocar a ânsia de dono pela coragem de desbravador.
E a ti, Posse, digo: obrigado pelas lições. Mas minha alma já não cabe nos teus limites.
Meus olhos já não en ergam
Através da minha puberdade
Salgada
Assinado:
Um ex-proprietário de ilusões.