CARTA XXVII: A festa de setembro
A noite estendia o seu manto quando, como era meu hábito, me fazia acompanhar de uma amiga pelas ruas centrais da vila que nos acolhia. Um mensageiro, apressado e ofegante, achegou-se a mim, entregando-me um convite selado. Era vossa a missiva, ó jovem campesino, um convite de letras singelas para um festim. E não era um bailarico qualquer, mas sim a Festa de Setembro (em linguagem popular, a Despedida do Inverno), que anualmente se celebrava nas proximidades da minha residência, a não mais que duas quadras, na casa de uns irmãos que alegravam a vila com seus folguedos. Confesso que tamanha ousadia do convite me deixou deveras curiosa, mas jamais me permitiria declinar de vossa companhia numa noite tão auspiciosa. Proferi ao portador: “Aceito, sem hesitar, o convite! Dizei-lhe que me espere às dez horas da noite à porta do baile. Asseguro-lhe que não tardarei.” Exultante, despedi-me da minha amiga, rogando aos céus a ventura de uma noite ao lado do jovem lavrador.
Apressada em alcançar o baile, sentia-me algo desprovida dos paramentos e adornos que a ocasião requeria. Rememoro ter passado por uma botica, não distante do local onde me encontrava com a minha amiga, e ali adquiri duas essências: uma para exalar antes do baile e outra para o seu término. Uma jovem dama da minha condição não deveria apresentar-se sem um requinte de elegância. Mais tarde, ao atingir os umbrais da minha morada, diligenciei em escolher a veste mais primorosa que adornava o meu guarda-roupa. Demorei-me a ensaiar cada peça, hesitante sobre qual delas melhor se harmonizaria com tão nobre evento. Por fim, dentre os meus haveres, descobri um vestido níveo que me assentava com graça e justeza. Era um traje comprido, de tecido delicado, desprovido de adornos excessivos, mas que revelava com pudor os encantos de uma donzela. “Este, por certo!” exclamei, com enlevo. Banhei-me com esmero, purificando cada recanto do meu corpo e, ao concluir, vaporizei a primeira fragrância que havia adquirido na botica. Ataviada e perfumada, abandonei o lar no instante combinado.
Já ecoavam as dez horas quando, com certa timidez, adentrei o recinto onde a festa fervilhava. Por mais próximo que fosse da minha habitação, jamais havia ousado cruzar-lhe o limiar. Em dado momento, temi que me houvésseis abandonado à minha própria sorte. Subitamente, um assobio familiar alcançou os meus ouvidos; voltei-me e divisei uma mão a acenar em minha direção. Eras vós a chamar-me ao vosso encontro. Apresentáveis-vos com distinção, em trajes elegantes, alvos e perfumados, a fazer inveja aos próprios fidalgos da urbe. Contudo, não vos acháveis só; vossa amiga acompanhava-vos ao baile, mostrando-se afável e simpática para alguém que servia numa taberna de duvidosa reputação. Acomodei-me ao vosso lado e trocamos amenas conversas, enquanto as luzes tênues e os acordes melancólicos de um violão envolviam o espaço.
Após longos colóquios, convidaste-me a ensaiar uns passos perante a assembleia. Confesso que nada havia preparado para vos retribuir a gentileza, mas aceitei o convite com o único propósito de me divertir. Era, afinal, um direito inerente à minha condição entre os demais. No exterior, onde uma fogueira crepitava, nada se mostrava mais emblemático do que o fogo que nos aquecia com sua labareda. A cada passo que trocávamos, a chama parecia avivar-se. Que significava aquilo em comparação com os nossos roçar de lábios e corpos? Com aquelas danças em que os nossos vestidos se roçavam com volúpia? Nenhum inverno teria a força de extinguir aquela noite memorável. Sentimo-nos, porventura, os seres mais bem-aventurados de todo o baile. Aplausos de uma multidão que talvez jamais voltássemos a encontrar.
Ao raiar da aurora, pelas cinco da manhã, o baile chegou ao seu epílogo e já nos encontrávamos em vossa morada. Despojamo-nos dos nossos adornos. Revelamos os nossos corpos na mesma perfeição da natureza, umedecidos pelo suor que nos cobria a epiderme. Trocamos por vestes sumárias, apenas o necessário para o leito (recordei-me de exalar a segunda fragrância). Ao deitarmo-nos, prendestes a minha mão ao contacto com o vosso corpo. A nossa fogueira íntima não se havia apagado, pois os nossos ósculos continuavam a ser trocados ali, intensos, veementes, sem que vento algum os pudesse arrefecer. Gradualmente, desnudamo-nos novamente num evento legítimo da natureza, o romance na sua mais pura expectação, onde sentimos o deleite de nos envolvermos em cobertas de algodão, a saborear a noite mais genuína que vivi em toda a minha mocidade.