Carta XXVI
Meu caro e ausente amigo,
Tomo a pena nesta ocasião, face à vossa prolongada ausência. Urge participar-vos que me vejo recolhida, há já muitos lumes, nos muros do Convento de Santa Maria, na expectância do dia em que poderei, sem sobressaltos, abandonar os limites de meu quarto. Tempos adversos atravessamos, meu bem-amado, onde seres humanos expiram na indigência do esquecimento, e outros perecem por desconhecerem se o futuro lhes sorrirá. Apenas posso assegurar-vos que a existência se me revela, a cada alvorada, mais sombria e desoladora.
Enclausurada e só, diviso da janela de minha alcova um panorama de parcos vultos. Alguns retornam do burgo, em busca de víveres para seus entes queridos; outros ignoram a natureza de um alimento ou teto; e existem, por derradeiro, aqueles que se atrevem a afrontar os dias bélicos, como se a vida ostentasse a frescura da primavera. Em sendo-vos deveras honesta, questiono a bravura destas almas que repousam em leitos hospitalares, à orla do olvido e da acrimônia. Porventura escutarão os falsos vaticinadores, que proclamam ser tudo isto um flagelo celeste contra aqueles que "desafiam a Divindade com os livros", e que a cura milagrosa reside na oblação diária? As religiosas deste sacro asilo mostram-se perplexas ante a tamanha audácia destes "profetas", que chegam a implorar clemência ao Senhor por todas estas almas malévolas.
Meu dileto, desconheço quantos crepúsculos mais permanecerei isolada em minha câmara, a contemplar os dias escoarem-se pela vidraça e o relógio de parede, mudo, sem anunciar o transcurso das horas com seu timbre. Não podeis conceber o suplício que me consome por não mais sentir vosso enlace, a unir meu corpo ao vosso, sem a firmeza de que em algum tempo futuro lograremos a paz. Alcançaremos a bonança em algum amanhã? Enquanto vos escrevo, parece-me ouvir vossa voz a proferir que tudo se serenará, e que eu deveria ao menos inalar um pouco do ar das ruas, ainda que resguardada da guerra. Querido, a vida aqui não se mostra fácil, e talvez onde vos encontrais a quietude se assemelhe à do Mediterrâneo. E, por mercê, não vos permitais dizer que tudo está bem; respeitai meu estado neste instante, assim como eu respeito vosso direito de sentir a vida pelos ventos.
Amado, esta epístola é singela e desprovida de muitos pormenores. Os dias têm sido uniformes, dedicados unicamente ao meu refúgio. Uma leitura proveitosa e a oração do terço têm-me concedido alguma tranquilidade neste convento. Enviai-me notícias; desejaria ardentemente receber vossos escritos e sentir vossa alma impressa nas entrelinhas.