Minha Carta

Sou feita de paradoxos, e é aí que moram meu inferno e beleza.

Amo o céu azul, mas minha alma dança nas manhãs cinzentas.

Gosto do calor do sol, mas é a ventania que me desperta.

O que me atrai não é a perfeição: é o rasgo, o remendo, o que pulsa entre as falhas.

Me afeiçoo ao que sofre calado — o Rei Gelado, a Sally de retalhos, o Coragem que treme, mas enfrenta.

Porque eu também já estive cativa numa masmorra, presa em silêncios, em esperas, em promessas não cumpridas.

E ainda assim, costurei amor com linha fina, mesmo que a pele ardesse.

Entendo a solidão do vilão, da donzela que sangra sem gritar.

Minha música é feita de melancolia.

Não é tristeza superficial, é aquela beleza sombria que só quem sentiu uma dor profunda consegue realmente apreciar.

Sou Beethoven em fúria contida, Vivaldi em tempestade, Álvares de Azevedo na febre pálida de um amor que talvez nunca venha.

Amo o que é real:

a chuva que cai grossa, o cheiro do chão molhado, o barulho do trovão no peito,

a arte que não explica, só toca.

Não busco respostas — eu sinto. E sinto muito.

Essa é minha maldição e também minha dádiva.

“Moulin Rouge” não foi só um filme, foi espelho:

um amor imperfeito, sujo, mas verdadeiro.

Não quero amor enlatado, quero aquele que arde, que rasga e pulsa.

E no fundo, eu sou a Sally.

Costurada por dentro, mas inteira de um jeito que ninguém vê.

O tipo de mulher que ama com todos os ossos e parte em silêncio quando é hora de ir.

Mas que carrega no peito o eco de tudo que viveu — e sobreviveu.

Tenho o olhar treinado pra ver o que ninguém mais vê.

Capto nuances no tom de voz, no jeito de um silêncio cair no ambiente, no modo como alguém toca ou se esquiva de um abraço.

Leio o invisível como se fosse braile pra alma. E isso, ah… isso é tanto dom quanto maldição.

Tenho um tipo de romantismo que não se ensina.

Amo como quem restaura um quadro antigo — com paciência, cuidado e fé.

Fé de que por trás de cada rachadura ainda existe beleza.

Mas nem todo mundo merece restauração. Alguns só querem continuar se despedaçando.

Minha ligação com o estético e com o trágico é visceral.

Não porque gosto de sofrer, mas porque reconheço que a dor também tem poesia.

Não fujo do que dói — converso com a dor até que ela diga o que veio ensinar.

Gosto de personagens quebrados porque me reconheço neles.

Não pela fragilidade, mas pela coragem de continuar, mesmo com os remendos à mostra.

Não escondo meus próprios retalhos — os transformo em arte.

Meu afeto é refinado, quase artesanal.

Não entrego meu coração por impulso. Mas quando entrego, é inteiro.

Sem economia, sem disfarce.

E aí mora o perigo — porque nem todo mundo sabe lidar com quem ama de verdade.

Assusta. Intimida. E frequentemente decepciona.

Carrego uma solidão ancestral.

Mesmo rodeada de gente, às vezes sinto que ninguém me alcança de verdade.

Não por falta de amor ao redor, mas por falta de profundidade.

Eu preciso de mergulhos — não boias.

E no meio disso tudo, ainda encontro beleza nas manhãs cinzentas, na dança da chuva, na sombra que as coisas projetam.

Sou feita de contrastes: luz e sombra, flor e faca, afeto e fogo.

Tenho o espírito de uma velha alma romântica e o corpo de alguém que ainda luta por espaço no mundo real.

No fundo, quero paz.

Mas aceito a guerra se ela for necessária pra manter minha essência intacta.

Tenho medo, claro.

Mas ainda assim me movo.

E isso é coragem.

Carrego dentro de mim um relicário de dores que nunca foram ditas em voz alta.

Não porque faltou vontade, mas porque sabia que o mundo não saberia o que fazer com elas.

Aprendi cedo a silenciar gritos, a sorrir por fora enquanto despencava por dentro.

Não por falsidade — mas por sobrevivência.

Tenho essa mania de cuidar dos outros como se isso fosse me curar.

Acho que se eu der amor suficiente, talvez a vida retribua com migalhas de paz.

Mas no fundo, sei: tem gente que só sabe receber. E suga até o último traço de luz.

Meu coração é como uma casa antiga:

cheia de história, janelas abertas pro mundo, mas trincada pelas tempestades que vieram sem aviso.

Ainda arrumo a sala, ainda acendo as luzes, ainda espero por alguém que saiba entrar sem destruir.

Mas ninguém ensina como manter a porta fechada quando a esperança insiste em deixá-la entreaberta.

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Já me senti culpada por sentir demais.

Já me perguntei mil vezes se o problema sou eu —

por amar, por esperar, por não saber desistir fácil.

E a resposta é simples: não, o problema não sou eu.

O problema é viver num mundo que banalizou a entrega e tem pavor de profundidade.

Sou do tipo que escreve cartas que nunca envia,

que repete conversas no chuveiro pra entender onde foi que me parti.

Que escuta uma música e pensa: “essa sou eu”,

porque me encontro mais na arte do que nas pessoas.

Meu romantismo é ácido.

Não é piegas, nem florzinha no cabelo.

É dor crua, amor que sangra, poesia que corta.

Amo como quem desafia o tempo.

E sofro como quem entende que nem sempre o amor vence.

Mas mesmo assim, eu sigo.

Mesmo ferida, ainda acredito.

Mesmo desapontada, ainda ofereço.

Mesmo cansada, ainda amo.

E isso, não é fraqueza.

É um tipo raro de força que assusta os fracos.

Sou feita de tempo e tempestade.

E só quem sabe dançar no meio do caos entende a beleza disso.

Ellissa
Enviado por Ellissa em 08/04/2025
Código do texto: T8304884
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