Carta Aberta à Sociedade Civil: O Paradoxo da Criança Negra em um Mundo de Contradições
Querida sociedade de duplos padrões,
Como ser uma criança negra retinta em um mundo onde o direito à educação e a bala perdida correm em sentidos opostos? A ironia cruel: a bala perdida sempre encontra meu cérebro, enquanto a educação de primeira linha alimenta cérebros de uma elite que nunca saberá o que é ter a pele marcada pelo peso da história.
Como não ser sensualizado e, ao mesmo tempo, mergulhado em depressão quando a obscenidade melódica do funk ejacula versos em beats envolventes? Versos que ensinam a "novinha" a sentar—não na cadeira escolar, para se tornar uma mulher inteligente e independente—mas para permanecer objeto, engravidar talvez, e gerar mais um "feto-projeto" de futuro incerto. Será líder de facção? João que vira Maria e vende a noite para sustentar o dia? Ou apenas mais um Zumbi – não o de Palmares, mas o que vagueia pelos becos, rouba, se vende, e depois, em um ato final de desespero, lança-se ao "paraíso branco" de Nárnia, sem perceber que está preso em um filme de terror: A Volta dos Mortos-Vivos.
E você, sociedade, me pergunta: Como não ser uma juventude perdida?
Como não reproduzir o machismo tóxico quando a própria religião—em nome daquele Jesus que amou uma prostituta—me ensina que "homem dorme na cama, mulher no pisador"? Quando a Bíblia, que diz ter fecundado uma mulher "nas coxas" (e depois do primeiro incesto da humanidade), ainda é usada para crime de ódio? Não foi fácil nascer das costelas, Adão... mas nós é que devemos carregar a culpa?
Como não ser homofóbico, misógino e racista em uma selva homoeconômica, onde o amor é simples, mas a simplicidade é devorada pelas bocas vorazes dos predadores alfa? Às vezes, só nos resta jogar um pouquinho no mar da ignorância cômoda — só para defesa própria.
Chega.
É, amigo saudoso Rubens Paiva,
a Cláudia (que a PM "escorregou" e arrastou pelo asfalto como bagaço de cana)
teve o azar de morrer antes de conhecer
— surpresa! -
uma coleção de novos "desaparecidos políticos":
Ágatha, Amarildo, Evaldo, Gabriel,
João Pedro, Kathlen, Luiz Paulo, Matheus,
Miguel, Pedro Henrique, Rayssa...
(e Marielle, é claro,
aquela que "atrapalhou" o trânsito da milícia).
Mas veja só que genialidade:
a cada novo nome na lista,
inventei um novo jeito de dizer
"foi mal-entendido".
E depois de 50 anos de sua morte,
30 anos do Carandiru,
10 anos de Amarildo...
(ah, mas ainda estamos aqui -
ops, desculpa, isso é "vitimismo").
Não queremos que sejamos estatísticas? Então pare de nos tratar como números. Não queremos que caiamos no crime? Pare de nos negar oportunidades. Não queremos que repitamos ciclos de violência? Parem de romantizar a nossa dor.
Esta carta é um espelho. Olha para ele sem medo. O que vocês veem?
Uma criança negra dentro de um homem que ainda acredita na revolução.