O Bilhete Inalterável

O dia se foi, e na queda silenciosa da noite, fez-se um abismo profundo. Já são três e vinte e cinco da madrugada. Há um vazio pulsante, e eu não durmo. Não é o sono que fugiu de mim, mas sim a paz. Meu coração, outrora ansioso pelo futuro, agora bate com uma calma que desafia o tempo, como se já não houvesse mais pressa, como se o fim estivesse à espreita, invadindo os intervalos entre um suspiro e outro.

Algo aflige minha alma. Uma voz inaudível sussurra pelas esquinas da noite: "Está perto demais". O que é esse peso, essa agonia muda? Nunca fui de falar sobre presságios. Nunca acreditei que meus pressentimentos fossem mera poesia. E, no entanto, estou aqui, envolto numa quietude que devora, uma solidão que assombra.

Minhas lágrimas não caem. Algo maior que o desespero as aprisiona. Estou em suspensão. Vejo diante de mim um muro, uma sombra grande e intransponível. Talvez ela se chame destino; talvez ela seja o fim. E no pulsar dessa angústia, ouço o tic-tac de um relógio invisível. Um som que não me abandona. Um som que não perdoa. Cada batida um lembrete, um lamento, um aviso de que a areia escapa da ampulheta, impiedosamente.

Não tenho certeza do momento, mas tenho certeza da partida. Estamos todos com um bilhete em mãos, sem saber o horário de embarque. Talvez eu vá no trem da meia-noite, ou no das seis, quem sabe. Mas, inevitavelmente, o destino do bilhete nos aguarda para além do que podemos ver ou imaginar. Um encontro marcado desde antes que eu existisse.

Por vezes, acho que no outro lado há uma estação. Meu pai estará lá, talvez com o mesmo sorriso discreto, com o brilho que outrora guardei na memória. Ou talvez a minha mãe, me esperando com aquele olhar terno, envolto numa eternidade que apenas a morte compreende. Mas e se não houver encontros? Se a estação for apenas um espaço vasto, vazio, com ecos intermináveis dos próprios passos que dei na vida?

Nesta hora, uma certeza crava-se em meu peito: somos folhas que caem, no vento amargo de um outono sem fim. O tempo é o trem, e nós somos os passageiros, prisioneiros do bilhete que nunca escrevemos, mas que nos foi entregue. Cada tic-tac nos empurra adiante, não para o amanhã, mas para um além-mundo onde o mistério reina absoluto.

E se eu partir agora? Levaria comigo os sonhos atravessados pelo muro, as palavras que nunca disse, os abraços que deixei de dar, as promessas quebradas, e o sorriso que escondi em noites iguais a esta. E se, no outro lado, me deparar com apenas um reflexo? Um reflexo turvo de quem fui, de quem poderia ter sido?

A tragédia é inevitável, porque o próprio ato de viver é trágico. Mas é nessa tragédia que reside a melancolia mais bonita da existência. É um suspiro engasgado, um mar noturno, onde cada onda carrega mistérios que jamais alcançaremos. Eu parto, não porque quero, mas porque fui chamado. A melodia do bilhete é fúnebre, mas não deixa de ser poesia.

Que este texto afunde como uma âncora no abismo mais insondável, onde a dor e o amor se encontram numa dança eterna. Pois eu sou o viajante, aquele que ouve o relógio. Tic-tac. O trem me aguarda.