Carta de Aniversário (para Caio Vinicios)
13 DE JULHO DE 2024, SABARÁ
Oi, Caio!
Quero te dar um presente. Que seja eterno e ao mesmo tempo celebrar algo que temos em comum: palavras.
Dizem que escrever é um dom. Eu, particularmente, discordo: acredito que escrever não é apenas um dom por si próprio. Escrever, da forma como o fazemos, é um dom de brincar com as palavras. Brincar com as palavras nos possibilita reinventar, interpretar, sentir, expressar, abstrair e, no fundo, viver de forma autêntica a nossa realidade.
Chegamos a esse mundo inseridos em uma realidade difícil. Há aqui uma necessidade intrínseca de reescrevê-la. O que me impressiona é que além de reescrevê-la, você a vive com riqueza. Sua riqueza, meu caro, é inspiradora. Modéstia à parte, me sinto incluído nessa prosperidade: esforço, humildade, respeito, consideração, persistência, sensibilidade, sede de justiça... e principalmente, sede de amor.
Sobre as riquezas materiais, essas virão como consequência de continuar a ser quem você é. E de tudo que somos e buscamos ser. Quando éramos crianças, buscamos ser apenas aqueles que sobreviviam dos OVNI's que nos perseguiam no corredor restrito da escola. Ou então sobreviver àquele auditório, em que a disciplina do Ensino Religioso nos obrigava a fazer orações antes de colorir desenhos. Quem me dera se fossem uns batuques antes da aula ao invés de decorar forçadamente o hino brasileiro ou alguma espécie de reza.
Desde o auditório, nunca conseguimos deixar de questionar as contradições. O Papai Noel era real ou não? Voltávamos àquele corredor proibido que apenas os mais corajosos iriam. Se ele era real, onde estavam os presentes? Onde estavam as chaminés de nossas casas? No Ensino Fundamental, o Papai Noel se tornou Deus com "d maiúsculo". Algum tempo depois, nos libertamos de todos os deuses com d maiúsculo.
Eu consegui me desvencilhar por completo depois que você me resgatou em uma conversa perto do Bar do Vicente, já quando estávamos no Ensino Médio. Era um caminho sem volta... escolhemos os corredores proibidos, divertidos e com mais aventuras, que mantiveram a chama acesa da imaginação e criaram um terreno fértil para nossas inspirações e aspirações.
A inspiração que você me traz já me rendeu algumas horas de escrita. Lembro-me de certa vez em que o visitei, uma das últimas vezes enquanto ainda éramos vizinhos - ou nem tanto assim, tinha aquela enorme montanha que até hoje me causa pesadelos entre nossas casas - em que, ao voltar para o meu quarto, dediquei-me ao ofício de eternizar aquela visita. Sem título, em uma folha avulsa de um caderno velho, no fundo de uma gaveta, encontrei-o datado em 7 de Agosto de 2019:
“Ultimamente, tenho visitado velhos amigos. Ou os mesmos amigos de sempre. Amigos que não via com tanta frequência. Não que isso tenha enfraquecido os laços, mas talvez seja o que tenha impulsionado a minha falta de esperança nas coisas nesses últimos dias. Tanto na política, nas relações, nos projetos e planos… na vida em geral. Nossos amigos são parte da gente: nossos gostos, gestos, cosmovisão, personalidade… e, às vezes, são as amizades peças-chaves para nos encorajar a viver novamente, encarar um novo ciclo ou até mesmo nos ajudar a reencontrar o sentido das coisas.
Ao visitar um amigo de infância - ou de vidas passadas, costumamos dizer - percebi como isso me transformou. Os corres do dia-a-dia não permitem mais uma simples visita assim, que acontece quando deve acontecer. Colocamos nossa conversa em dia: relacionamentos, visões de mundo, política, música, referências, etc. E foi aí que me encontrei novamente. É curioso como uma conversa com um amigo de longa data nos faz retornar às nossas raízes e facilita o caminho para sermos quem somos novamente. Relembrando costumes e traumas passados, comentando fatos de um passado não tão longínquo; resgatando minha essência que esteve indecisa, por um lado, entre meus devaneios e inseguranças. E, por outro lado, entre as mudanças forçadas sobre minhas crenças e convicções.
Todos esses aspectos, relacionados a um fracasso político que ia se arrastando e destruindo todo o pouco que fora construído antes para nós, vendaram os meus olhos. Tinha me esquecido como enxergar um mundo novo a se construir e descobrir. Esqueci-me também de olhar para dentro de mim. Ao me ensinar, ali na sua sala, sobre um jogo de cartas, provavelmente de algum dos seus RPGs favoritos, percebi que nossas vidas se estendem ainda mais além da política, da carreira profissional e de todos os outros planos incertos. Chega à capacidade de nos levar a uma outra dimensão fantástica, onde há magia e a distração dos problemas reais até onde é possível. Refletindo juntos sobre a falta de sentido de vir a um mundo que está tão desfigurado e injusto e também sobre os paradoxos que se formam em saber que estamos vivos, chegamos à conclusão que as amizades reais são uma das ferramentas mais poderosas para continuar a busca por sentidos, se compreender e não esquecer de onde viemos e para onde queremos chegar.
'Volta mais vezes, cara! Some não!' Pode deixar, eu voltarei mais vezes. Mas antes, preciso visitar outros velhos amigos. Preciso fazer das visitas uma parte da minha rotina. E não vou esquecer daquela frase que eu ou você disse em algum momento:
Se você existe e tem consciência disso, você pode e deve usar isso a seu favor.”
Desde então, os corredores se tornaram cada vez mais estreitos. Assim como eu, sei que você se recusa a terceirizar todo nosso prazer e todo o nosso sofrimento a um ser invisível, distante, que se encontra acima dos céus e que não podemos ver ou tocar. Assim como eu, você transcende a realidade a partir da escrita e encarando as coisas como elas são. Por isso somos tão sensíveis e precisamos escrever.
Escolhemos traçar o caminho que nossos pais diziam ser o "caminho mais largo". O que eles não sabiam, no entanto, é que esse caminho vai se tornando estreito também. Ao ponto que as exigências da vida muitas vezes nos afastam fisicamente. Porém, estamos conectados espiritualmente desde o berço. Sem nenhuma credulidade e por mera força do acaso - acaso este que faz coisas incríveis em que já desistimos de atribuí-lo a alguém, alguma força ou motivo indecifrável - nos possibilitou compartilharmos do mesmo espaço, da mesma realidade e da mesma amizade.
Na pandemia da COVID-19, ficava ainda mais difícil continuar com as visitas ou de nos encontrarmos ocasionalmente. Não só você, mas muitas pessoas que eu amo. Em uma expressão talvez até exagerada, estava lá um pouco da sua inspiração novamente para produzir outro registro, este datado em 13 de Abril de 2020:
“ DAS AMIZADES PRÓXIMAS
a alguns pés de distância
estão distantes, na mesma rua
de sua casa não dão importância
que distância nenhuma se recua
lonjura atua junto ao tempo
que a todo momento, é incapaz
ele jamais poupará seu consenso
abatendo histórias de maneira sagaz
mais triste é ser a parte que resiste
porque rolê não se dá sozinho
andar só é saber que existe
outro jeito, outro caminho
meus amigos moram perto demais
as saudades são autos obscenos
vou visitá-los de novo mais tarde
ou desejar que ainda nos vemos. ”
Obrigado por também fazer parte dessa seita de pessoas que escolheram amar acima de tudo. Onde o nosso ofício inevitável é tentar trazer com as palavras o que muitas das vezes não é possível expressar com as palavras. Recentemente, escrevemos juntos uma poesia que dispensa demais comentários, finalmente concluída no dia 18 de Fevereiro de 2024:
“ BALUARTE
os muros fortes que se edificam ao seu redor
podem te proteger de todos os seres.
mas nunca se esqueça:
os fantasmas atravessam paredes.
os profundos cortes que cobriram sua dor
podem até a entorpecer às vezes.
mas nunca se chega:
os traumas atravessam os meses.
os anos, as décadas, um desses desprazeres
que duram uma vida inteira.
ao entorno existe uma brecha derradeira
capaz de derrubar todos os seus muros.
do topo assiste que a própria natureza
sempre desfaz as ruas, fortalezas e viadutos.
o seu corpo de cicatrizes não se contenta
mesmo atrás das distrações deste mundo.
de tudo que as sensações não te acalenta
novas rezas por mais e mais produtos.
produtos que adocem os seus sentidos
que a falta de sentido amarga.
o tempo passa e traz a resposta:
acredite, não é nada.
nunca houve inimigos lá fora
nem impostores dentro da sala.
acredite, não há nada!
a vala nunca foi e nunca será necessária.
é assim, como o paladar de uma criança
virando o paladar de um adulto.
o doce se torna amargo
e o amargo se torna culto.
os fantasmas se transformam em vultos.
e todos os traumas
se transformam em redutos. ”
Nunca esqueceremos de resistir e transformar nossas dificuldades em redutos! Que continuemos comemorando as pequenas conquistas de uma grande conquista - a de estar vivos e conscientes. Dentre os poucos privilégios que (ainda) temos - porquê vamos conquistar vários outros - um deles é que fazemos parte um da vida do outro. Essa celebração no bairro da Serra é a celebração de dois velhos amigos daquele velho bairro Novo Alvorada. De dois irmãos e outras almas incríveis que compartilham conosco esse momento. A comemoração da sua nova idade não passa de apenas um mero número para definir uma cronologia a marcar nosso encontro do berço até aqui.
Eu não parabenizo nesta carta apenas o seu aniversário. Eu parabenizo a nossa amizade! E além disso, a sua magia: o fato de conseguirmos estar distantes e ao mesmo tempo mais próximos do que nunca! Grande abraço, Mestre dos Magos! Obrigado por estar aqui - vivo e presente.
Te amamos! ❤️
Com todo carinho,
Gabe