Uma lembrança em tempestades de areia

Querida Rosmertta, existem dias felizes. Nunca negaria esta dádiva rara dos céus. Mas eu que sou de caráter cauteloso temo exacerbar-me. Já caí na armadilha de sorrir sem preocupações. Por algum motivo aos dias felizes, mesmo tão escassos, se sucedem dias de percausto e estes são como lança em meu peito. Morro cada vez que isso se repete e se me atrevo a ser muito feliz a lança vem mais afiada. Restou tão pouco de mim, alguns cacos que ainda ouso colar quando a poeira baixa. Mas se o temporal persiste, deixo partes de mim perdidas no terreiro e para achá-las depois sempre é mais difícil.

Hoje não é um dia bom, nada "mágico" ou "glorioso" aconteceu, mas ao andar, ao deixar os limites confortáveis que o dinheiro permite, sempre vejo mais. Estava tão preocupada esta manhã, pensando em como usaria o pouco dinheiro que minha família possui no momento para tantas tarefas, inclusive transportes. Saí sob o sol com minha irmã, ela sempre alguns passos atrás. Nosso destino era a delegacia, que apesar de longe, facilitaria que encontrássemos um ligeirinho. Já na avenida um moço perguntou se íamos ao centro. Que alegria, pois "sim!" e assim fomos.

Na viagem uma velha senhora, depois uma mãe e sua filha dividiram o transporte. Éramos seis, o silêncio sobre o banco de trás, as histórias contadas à frente. Da vida simples nos anos 70, às músicas e brincadeiras, para então lágrimas perdidas. A voz embargada, cheia de uma culpa que não lhe pertence, vem da ideia de que poderia ter sido diferente. Conheço-as assim, pois ela chorou como minha avó. Perdera um amigo, um filho, ao certo não sei. Contou com lástima como pediu para que não saísse naquele horário, mas ele o fez e assim se foi. "Como pode existir gente tão desumana?" ela perguntou. Quem haverá de nos responder? Mas era forte, que mulher absurdamente forte. O semblante gentil sorria e mesmo com a dor da perda, ela permitia-se rir. Sentiu saudades da infância durante aquela viagem, da liberdade, relembrou as premonições da mãe que, como constou, não estavam tão erradas. "Na infância, íamos da Santa Maria da Codipi até aqui de pé. Perguntava para Mamãe: 'Mas mamãe, será que um dia vamos ter carro para nos levar?' e ela dizia que sim. Falava que as ruas iam estar cheias de carro. Mamãe estava certa". Naquelas palavras eu vi a criança, senti na pele sua ingenuidade e esperança voltarem. Que tempos perdidos foram esses? Eu não sei, mas lembrei das minhas próprias lembranças especiais. Rosmertta, o que sinto é o que penso: na lembrança reside vida e ela sempre traz aos nossos corações uma parte perdida em tempestades de areia.

O dia passou, algumas caminhadas sob o sol do meio-dia foram necessárias. Estive em um monólogo comigo mesma, pensando como posso cuidar melhor do outro do que de mim. Coragem é um poder que só surge para o outro, raramente é algo que acredito ter quando sozinha. Talvez esteja nisso a importância de outras pessoas. Esse é o motivo pelo qual sofro? Mas as pessoas valem à pena assim? Às vezes penso que não, às vezes a resposta é um "sim!" contundente. Sinceramente acho que minhas crenças são tão antagônicas quanto eu. Elas mudam ao longo dos dias e detesto pensar que isso seja mero sinal de pouca convicção. Pensarei que sou flexível e à medida que a vida me toca me transformo. Pior que um inseto mudo e retorno à forma anterior e esse ciclo é infindo, doloroso. Sim, quem disse que voltar a acreditar não machuca? Dessa forma segui, com um discurso auto-repreensivo de que deveria ser mais corajosa por mim. E fui tocando as paredes sombrosas, meu recanto. Fui do cinza, ao laranjo e ao rosa estridente; vazio e então listras amarelas no chão que chamei "caminho da felicidade". Talvez se andasse pela estradinha sem hesitar ou escapar um pé ou dois pudesse ter um bom dia. Verdade seja dita: não acredito nas minhas próprias ideias, mas essa funcionou. Beijei as flores com minha alma e parti. A sala estava fria, mas isso não era ruim naquele momento. Suava pelo calor do dia. Sentei-me e respirei. "O que haveria para pensar?". Nada. Escutei o ar-condicionado zuando. Me acostumei aquele barulho, assim como às vozes intercotadas dos alunos matutinos partindo. Não é estranho? Nos moldamos aos ambientes como se eles fossem organismos tão vivos quanto nós. É nisso que está minha incerteza. Trocar de sala significa adequar-se a uma nova luz, um novo cheiro, um novo som, novas cores, novas temperaturas. As salas de uma faculdade são aparentemente iguais. Exatamente! Elas aparentam ser iguais, mas não são. O espaço muda, as texturas. Sento sempre na segunda carteira da fila da esquerda, mas nunca é a mesma coisa. Reacostumar-se exige energia e paciência e não gosto disso. Esse pensamento me fez entender uma parte de mim. Tenho receio pelo novo. Apego-me as coisas e pessoas, faço barreira ao desconhecido. A vida que me obriga a mudar e, por mais que me irrite a priori, sempre agradeço pelo requintado compilado de novas lembranças.

As almas que me cercam hoje me deixam feliz. Observo-as em segredo, amando-as. Antes sozinha— talvez ainda esteja se não me sou por completo— me sinto acolhida. Dona Conceição que é como mãe, Thamires que não julga, Jayane que é mais séria e desconfiada, Beatriz quase uma incógnita, a querida Klara que é tão forte, Paloma sempre atenciosa e até aquelas em que não confio mais me são queridas. Eu sei dos defeitos que temos, não espero nada de nenhuma. Só quero estar com elas, aproveitar os tempos que são tão caros e passageiros. As pessoas são como o vento, não podemos pegá-las ou segurá-las para sempre. Elas vêm e vão e devem ser apreciadas na brevidade que lhes nomeia, essa é a verdade secreta e a essência que me alimenta. O desapego tem suas vantagens e desvantagens. Primeiro: desapego não signiignifica desamor, ao contrário, significa liberdade e na liberdade sempre haverá o mais cru amor, ela é o âmago da verdade. Um gato ama assim, ele vem e vai... E seu carinho ainda persiste. Há amor mais verdadeiro que esse? Ele não sufoca, abre espaço para que nos conheçamos. Segundo: o desapego nem sempre é bem-visto. As pessoas o consideram falta de amor e nisso se afastam. Talvez seja dos homens o desejo de usurpar, de possuir o outro por completo e apenas para si. Equívoco! Esse é o amor mais frágil e o mais doloroso a longo prazo. É um amor parasitário que drena e destrói. Precisamos do outro, mas não é certo fazê-lo carne da nossa carne. Pegue as aparas, aprenda com as brechas e cresça com pouco. Isso basta, deveria bastar a todos. Mas nos ensinam a sermos amados, que termos a atenção completa em nossos narizes é o ideal. Quanta bobagem...

À noite chegou o momento de partir. Como estive feliz não apaguei-me aos detalhes sucintos. Causei um curto na lâmpada ao que um moço gentilmente chamou minha atenção. Vi colegas partirem, atentei-me aos rostos que me eram queridos sem saber. Sim, podemos nos sentir gratos em apreciar o outro. O uber chegou e me fui para longe, longe do que um dia haverei de chamar de casa, e quantas casas tenho pelo mundo. Ao "Boa noite" se sucedeu o choque da porta. A janela estava embargada. Girei a alavanca da porta com força. De sua abertura vi o mundo com olhos mais gentis. Fazia tanto tempo que não o via assim. Talvez escrever tenha me dado novo fôlego, graças aos incentivos de minha única leitora. Quando o carro parou na rua a pedido do motorista que compraria água, um homem se aproximou. Já tinha visto aquele rosto. Estava drogado. O gesto de medo é automático. Pessoas escondem celulares, rostos o encaram com uma raiva inesperada. "Ah! Sentem ódio dele por nada... Se fosse um bandido sentiriam medo. Então, esse deve ser um desajustado" concluí. Ele não ligava para essas coisas, não na condição que se encontrava, mas era inegavelmente consciente das injustiças. Citou "as injustiças dos meus". Era sobre raça e pobreza que falava. Estava sorrindo, falando palavras desconexas, mas sem dúvida inteligentes. Era um homem acima da média. Talvez eu devesse ter medo daquele homem, mas não senti, também não julgo quem o sentiu. Trata-se do desconhecido e esse pode assustar. Mas bastava olhar em seus olhos. Podem me chamar de louca, dizer que estou inventando, mas não havia maldade ali. E se não fosse por falta de educação vasculharia atrás dos resquícios da alma que vi nos olhos. Dizem que nosso instinto é sentir-se ameaçado quando olhados. Como o faria? Queria saber em que mundo ele se encontrava. Não parecia o nosso. Que bom que estava feliz, mas que pena que viva tão sozinho. Depois disso o motorista se apreçou, agradeceu e partiu. Teria mais medo dele — do motorista — cujo os olhos não vi, é o que penso. São pequenos gestos, atitudes encobertas como cobrar um pouco mais do que devia por uma parada que não solicitamos que mostra um caráter subjacente, quase "desmoral". Era tão pouco para mim alguns reais a mais, mas o significado que trazia mostrava muito. E não foi isso que o homem drogado falou: "Um real! Uma moeda grega...". Apenas alguns reais para a verdade.

Lyadri Pondraci
Enviado por Lyadri Pondraci em 19/11/2024
Código do texto: T8200237
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2024. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.