Uma carta para Pedro Cardoso

Oi, Pedro, bom dia!

“Num piscar de olhos, o nosso relógio biológico muda de estação e ano” ... pois é. Num piscar de olhos, muitas estações passaram por mim sem eu ver. Como você sabe, já perdi um olho e estou tratando de uma obstrução da retina no outro. Por isso demorei para ler sua última carta. Hoje, ampliei a fonte no computador e com vídeo e teclados gigantes, estou lhe respondendo. Ainda bem que a tecnologia veio também para ajudar a minimizar algumas limitações.

Sobre os poetas suicidas: No passado, criou-se uma lenda que dizia: “Poeta bom, é poeta morto”. Também diziam que “de poeta e de louco, todo mundo têm um pouco”. Creio que isso influenciou e ainda influencia muitas pessoas que têm a sensibilidade à flor da pele. Alguns levaram isso muito à sério. Esqueceram que não se deve levar a poesia “ao pé da letra” pois sua base é composta essencialmente de metáforas.

As pessoas, hoje, dizem que a poesia cura. Pode ser que as poesias “úteis”, de autoajuda ou de engajamento, convençam algum leitor desesperado, assim como as orações, os mantras, sermões, discursos. É praticamente o mesmo efeito. Mas, e quanto ao escritor, quanto ao autor, será que sua poesia o ajuda? Convence-o? Converte-o? Não creio. Particularmente, acho que pensar e escrever poesia o tempo todo é quase um desequilíbrio mental, um vício, uma necessidade de passar à limpo e contar para alguém aquilo que lhe afeta no momento, sejam sentimentos bons ou ruins. E os poemas de dor ou raiva são sempre os melhores, saem imediatamente, espontaneamente. Já os de amor... ah, esses saem um tempo depois, das lembranças, muitas delas inventadas, são textos trabalhados para serem poesia, moldados às palavras já proferidas, não são o que intimamente o poeta sentiu de verdade.

Você já pesquisou quantos poetas sofrem de cirrose, doenças pulmonares, drogas e depressão? E quantos poetas acabam falidos, sozinhos, sem a companhia de suas rosas e cravos? Isso não é uma forma de suicídio?

Pois é... você deve estar decepcionado comigo por eu pensar assim. Afinal, também sou poeta em alguns momentos. Mas não sou das boas (se fosse boa poeta já tinha morrido kkk). E ainda não estou totalmente louca. Talvez (na)morando com o Alzheimer - o que é quase normal para quem vive mais que meio século.

Já me entreguei para a poesia durante um tempo, na juventude. Depois que sobrevivi à idade dos suicidas, estabilizei. Coloquei-a no seu devido lugar. Sinto-a sempre e gosto de senti-la. Mas, na maioria das vezes não a traduzo mais em palavras. Controlei minha necessidade de dar forma e asas a ela. Domei o seu e o meu ego. Vivemos em paz, uma dentro da outra. De quando em vez, saímos para passear num terceto, sem nos demorar muito. Ou escrevo cartas demoradas, que só o destinatário lê. Saciamo-nos.

Não sei quase nada sobre o poeta Serguêi Iessiênin. Gostei do poema que você escolheu. Fiquei em dúvida sobre a rivalidade dele com Maiakovski... Me parece admiração. Quando um escritor admira o outro, pode expressar esse sentimento na forma de provocações. Mais ou menos como eu estou fazendo contigo agora. Não parece que estou discordando completamente de ti? Pura provocação, meu amigo. E só faço isso porque sei que você aguenta o tranco e reage à altura.

Quanto a Maiakovski, eu gostava dele. Demais, até. Tanto que, junto com um amigo chamado Douglas, fabricávamos uma vodca chamada Maiakovski. No gargalo da garrafa pendurávamos frases dele. A mais procurada era: “Melhor morrer de vodca do que de tédio”. O cliente mais famoso que tivemos foi o Leminski. Acho que já te contei essa história... bendito Alzheimer, fica repetindo o passado para eu lembrar que já vivi.

Fica bem, meu louco favorito. E não esqueça de regar suas flores, todos os dias.

Abraço afetuoso

Marilda Confortin
Enviado por Pedro Cardoso DF em 26/07/2024
Reeditado em 26/07/2024
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