Carta-Testamento
No tálamo que me foi calma e resguardo, incertos cálices me abraçam. Enquanto me aguarda aberta a campa que não se delongará assim, ainda encontro força que antes desconhecia e o exíguo tempo que me resta é suficiente para dizer adeus... mas como eu silenciar poderá ser mais prazeroso a quem me ouve, me salvo o direito de permanecer calado e concentrar parca energia na tênue lembrança do teu olhar que ingenuamente infundiu no perene aprendiz de poeta os mais leais e doces versos, mesmo sem acervos; bem como do teu sorriso que me fez bem-aventurado nos últimos momentos que cá jazi, precisamente ao teu lado, ouvindo-te pensar dos briosos anseios em meio ao deleite de um sorvete e um breve passeio até levar-te de volta ao teu reduto...
Apesar de amar meu berço, há muito apeteço daqui sair tal qualquer fugitivo a procurar distante uma terra que me acendesse as portas e me adote como preciso, do jeito que jamais a minha fez do dia que brotei até o último suspiro que nela dei!
Eis que é chegado o momento enfadonhamente acreditado e, num misto e conflituoso sentir, a mim nada mais compete além de fechar os braços, na esperança meio pueril - uma das poucas coisas que não morreu em mim ante tudo o que desgostosamente suportei - de que o paraíso existe, e partir!
Como legatário algum me existe, já que bem algum possuo, se qualquer proveito tiver, pela ternura que por ti em mim vive, apenas uma frase deixo: Aqui, das dores que senti, a que menos me doeu foi a da traição d'amor que tive!
Com eternas saudades, meu ínfimo carinho.