História em Transe II

 

À Maria: Resolvi te enviar esse, porque eu não sei se você já leu os textos de Saramago mas estes são muito provocativos e originais. A maioria dos textos dele dialoga de modo crítico e mesmo ácido, eu diria, com o elemento religioso. Basta que se lembre que o seu livro mais famoso O Evangelho Segundo Jesus Cristo apresenta um Jesus somente humano, cheio de dúvidas e angústias, que inclusive ao decorrer da caminhada descobre o amor de uma mulher. O livro gerou uma onda de protestos quando foi lançado, sobretudo por parte dos católicos portugueses, mas como eu sou luterano sempre dei ouvidos aos hereges. É claro que eu li o livro e ele não abalou a minha fé, que já é frágil por outros motivos. É um livro provocativo como eu já disse, mas se lido e entendido como ele é - um romance - é um livro profundamente bonito.

Do Leo.

 

Ao Leo: Eu adoro conversar contigo Leo. Admiro tua inteligência e sabedoria. Muito obrigada por lembrares de mim. Também dou ouvidos aos hereges. Rubem Alves é um deles.

Da Maria.

 

À Maria: não sei você, cara amiga, mas eu tenho comigo algumas porções, bem pequenas das Sagradas Escrituras: trechos estes, que me ampararam, ou que me consolam, que me corrigem enfim, pequenas porções – que o perdão do trocadilho – me mantém caminhando adiante. Desde muito cedo eu fui entregue à tutela da minha avó pelos meus pais. A minha avó é a pessoa que eu mais amo nesse mundo. E como já deve ser do teu conhecimento, ou ao menos da grande maioria, essa minha condição física eu a tenho desde que nasci. Chama-se paralisia cerebral, aqui no meu caso afetou bem mais os membros inferiores bem como o lado esquerdo superior. Mas fique tranquila, não foi para contar para você o meu quadro clínico, que eu estou hoje aqui. Mas para dizer, talvez de um modo provocativo que este texto que que te aponto, muitas vezes esteve entrelaçado com este mesmo quadro. Por isso eu quero te falar sobre um texto da Bíblia, tecer considerações sobre João 9.1-7 que traz para os nossos dias, de um modo muito importante e especial, A Beleza de Um Olhar Acolhedor. E para tanto, inicio relatando parte de minha história que te é, de algum modo, conhecida, muito embora não nesses detalhes.

Do Leo.

 

Ao Leo: o conhecer da história se dá a partir de minha experiência na docência, onde minha primeira visão de ti foi o teu chegar  à sala de aula em tua cadeira de rodas acompanhado de um grupo que te preparou o espaço sem que me tivesse sido passada a informação de tuas necessidades que se refletem em direitos que não te pude garantir. Não houve tempo para apresentações, não houve tempo para ouvir tua história. Nosso momento marcante foi minha citação de Morin e teu encantamento por estar diante de um docente admirador do filósofo/sociólogo. Então te sou grata que agora posso te pedir: me conte a tua história querido Leo.

Da Maria. 

 

À Maria: Logo que eu cheguei na casa dos meus avós, pessoas piedosas abordaram os dois velhinhos e lhes disseram: “Olha, façam um profundo exame de consciência, a fim de descobrirem qual foi o pecado que vocês, como família cometeram para terem que lidar com um parente assim?” Minha avó, uma mulher de profunda paciência, mas ao mesmo tempo de respostas diretas, disse: “Eu agradeço a preocupação, mas quero deixar claro que o Leo não nos é um fardo ou um produto de pecado, seja dele próprio, nosso ou de outrem. Ele foi dado a nós como um presente da Parte de Deus”. Desde muito cedo eu questionei a minha avó do por quê de eu ter nascido deste modo. O por quê de os meus primos poderem fazer tudo aquilo que eles enquanto crianças conseguiam fazer – jogar futebol, subir nas árvores ou nadar no Rio que havia perto de casa. Por que? Por que? Por que? Eu enchia as paciências da minha matriarca. O por quê das minhas pernas não funcionarem? Um Belo dia ela me disse: “meu filho eu não sei o por quê de tudo isso. Eu não tenho uma resposta clara, mas eu conheço uma história que talvez possa te trazer paz”. Ela me colocou sentado na sala de nossa velha casa, abriu a nossa bíblia de família, que já estava conosco algumas gerações e leu o texto que te indiquei. Ao finalizar a leitura, ela sorriu para mim e disse: “Não sei explicar por quê ou como isso ocorre, mas quero acreditar que de alguma forma, as obras de Deus, também se realizarão na sua vida meu filho”. Seja como for, durante muito tempo eu me vi na pessoa do cego que este texto relata.

Do Leo.

 

Ao Leo: a angústia das perguntas e os processos de reflexão nos permitem avançar no conhecimento de nós mesmos e a elaborar estratégias para fazer o enfrentamento de nossas limitações que, embora aqui citadas como físicas, também podem ser imaginárias posto que a mente, o Cerberus pensativo não vê limites ou fronteiras para ativar o processo de reflexão com vistas à mudança e um novo projeto de vida que permita voar em busca do que nos sustenta a alma e nos fortalece o espírito, tornando, com isso, o corpo forte e pleno de sonhos e horizontes. A curiosidade sobre o texto que me indicas é latente. Aguardo tua próxima interação.

Da Maria. 

 

À Maria: este texto, via de regra, apresenta dois olhares completamente distintos. Logo no versículo 1, o texto nos relata que, “Jesus ia caminhando quando viu um homem que tinha nascido cego”. O verso 2 por sua vez complementa a linha de raciocínio salientando que, “Os seus discípulos perguntaram”, a razão pela qual aquele pobre diabo era daquele jeito. Ou seja, se eles perguntaram, significa que estes discípulos também lançaram olhares na direção do homem cego. É sobre estes dois olhares e a diferença descomunal entre eles, que refletiremos essa manhã. Comecemos, pois, por meditar no que significa o olhar dos DISCÍPULOS.

Do Leo. 

 

Ao Léo: Pensando nos discípulos me surgem perguntas de quem sejam hoje... quem poderiam hoje representar na sociedade em que vivemos. Também me toma a curiosidade de saber mais do que o texto sagrado relata de suas vidas. O que pensavam e sentiam nos momentos mais extremos, que angústias latentes bramiam em seus corações em meio ás dificuldades e obstáculos que se apresentavam no dia a dia de suas vidas quando com ou ao largo do caminho de Jesus – quando se encontravam sozinhos em suas lutas mais íntimas e pessoais, quando distantes do mestre querido.

Da Maria. 

 

À Maria: O texto não faz questão de nos dizer quem foram os discípulos que lançaram uma pergunta acerca do pecado hereditário, para Jesus. Talvez, esteja expresso aqui que a totalidade do grupo de Jesus olhou para aquele homem, com um olhar de pena. Olhou-o literalmente com um olhar altivo, arrogante, “De Cima para Baixo”. Afinal, aqueles eram homens piedosos, que certamente iam à Sinagoga todo Sábado, e se dirigiam ao Templo central de Jerusalém – No Mínimo – uma vez por ano. Eram homens que conheciam muito bem, a assim chamada Teologia Judaica da Retribuição, que versava o seguinte: para cada falta que cometeres, haverá um castigo correspondente. E ainda, por vezes, algumas faltas que você cometer, serão cobradas da tua descendência. Aqui é preciso que se diga, pode-se discordar destas aplicações, mas não se pode acusar os discípulos de estarem fora do seu contexto religioso. Com essa postura, eles estavam na esteira de uma teologia judaica oficial, que dominou o cenário religioso de Israel até o exílio da Babilônia. Porém, quando as hordas do rei Nabucodonosor invadem Jerusalém e levam o povo de Israel cativo a uma Terra estranha, este mesmo povo de Deus precisa repensar o seu modo de culto a este Deus de um modo drástico. Deste período, surgem obras como o livro de Eclesiastes, ou o livro de Jó que não cabem mais dentro dessa lógica de causa e efeito. A partir daqui o povo de Israel se põem a pensar de um modo quase atômico, de um modo quase a revirar as entranhas, como pode o justo sofrer enquanto o ímpio prospera?

Do Leo.

 

Ao Leo: Eu também quero pensar a partir desse modo atômico, desse modo a revirar as entranhas em busca do desconhecido do que vive ali, entranhado, incrustrado e cauterizado pelo tempo e distância desse flamejar do pensar. Emociona-me tua história. As perguntas que te sondaram o viver e que te mantinham sempre em busca deste cerberus pensante que tanto admiro em ti. Também sempre me questionei sobre a hereditariedade das dores, a herança das chagas, a descendência do ser considerado “anormal”, “diferente”, “exclusivo”, ativando preconceitos, atraindo estigmas e sustentando teologias que apresentam um Deus vingador e cruel, um Deus de castigo e sem compaixão.

Da Maria. 

 

À Maria: não consigo te ver pensando como os discípulos. E o que me surpreende na forma como agiram é que, seja como for, os discípulos conheciam o conteúdo de Jó e Eclesiastes. Por que então eles olharam aquele homem cego com todo o arcabouço da teologia da retribuição? A minha tese, cara amiga, é de que eles não suportavam o fato de que em alguns momentos – e eu me quedo a tendência de pensar que esses momentos não sejam tão raros – o Deus de Israel, Deus pai de Jesus Cristo, se mantém no mais absoluto silêncio. Silêncio que de tão grande e angustiante, chega a ser ensurdecedor. Estes homens piedosos, que com essa pergunta, quiseram não fazer uma pergunta, mas dar uma resposta quiseram falar (talvez acusar) daquele momento quando (e onde) o próprio Deus se manteve calado, calado, por vezes, como um boi no matadouro.

Quando eu me dei conta disso, a minha identificação deixou de ser a do homem cego e passou a ser a dos discípulos. Afinal, não fazíamos assim também nós? Nós também não temos a péssima mania de, muitas vezes, querermos agir como advogados de Deus. Dizemos para um irmão em luto: “Você não pode brigar com Deus. Não pode chorar. Afinal de contas, Deus sabe o que é melhor para você” Ou ainda aquela clássica: “Não diga para Deus que você tem um grande problema, mas diga para o seu problema que você tem um grande Deus” Ou ainda a minha preferida: “Se Deus fechar uma porta na sua vida, ele abrirá uma janela”.

Do Leo.

 

Ao Leo: são tantas formas de tratar a realidade social com o desdém da dor e do sofrimento culpabilizando o vulnerável por se encontrar naquela situação ou condição, por não lutar, não enfrentar a “dificuldade”, a tristeza, a dor da perda com altruísmo, com determinação, amiúde, deixando transparecer que as fragilidades, o sofrimento e a dor do ser humano são inerentes ao pecado, ao afastamento de Deus e de seus ensinamentos.

Da Maria. 

 

À Maria: sim, de fato, na ânsia de dar respostas onde o próprio Deus não as deu. Na ânsia de defender Deus, minha cara, a gente pode acabar se portando de um modo, literalmente criminoso, com nosso irmão que sofre. Aqui, me é muito mais evangélica a postura do Salmista ao gritar a plenos pulmões a sua dor: “Ó Senhor Deus, até quando esquecerás de mim? Por quanto tempo esconderás de mim o teu rosto? Até quando terei de suportar este sofrimento?”.

Do Leo. 

 

Ao Leo: E quando vamos entender que nem todas perguntas tem respostas, que nem tudo é chão debaixo dos pés? Quem somos nós querido amigo? Como vivemos? Profunda e misteriosamente alienados do que seja o milagre de apenas existir, do vir-à-ser e do ser. Nos escondemos do mundo em nossas cavernas interiores, caminhamos calabouços, nossas próprias prisões. Aquelas que nos cercamos para nos alienar do amor à quem de amor precisa. Não amamos ao outro e nem a nós, posto que recebemos um pedido: ama a teu próximo como a ti mesmo. Como amar ao outro se de mim não tenho amor? Concordo com Morin quando falou que o amor é uma forma de alienação, mas o tipo de alienação que ele vê como uma doação-transferência. Ele tinha um entendimento diferenciado da expressão. Ele a via como doação de si mesmo à outrem. Ou seja, quando nos entregamos ao outro e não temos mais consciência de nós mesmos, mas do outro. O filósofo diz: "doação-transferência de sua própria substância"  ao outro. E ele se pergunta e se responde porque se nos doamos ficamos pobres de nós, mas ao nos doar nos enriquecemos a nós próprios. Consigo entender isso porque compreendo que não estamos mais sozinhos. Superamos a nós mesmos e, ao mesmo tempo, temos uma perda de nós próprios (de si). E se há reciprocidade neste doar encontramos a plenitude. Já para Hegel a alienação tinha a ver com o espírito. Conforme o pensador, a alienação é ambivalente no que tange ao espírito uma vez que, em seu entendimento, tem a ver com o progresso  do espírito no mundo que, para se encontrar, precisa, fundamentalmente, antes se perder. Simples assim: tudo que é "encontrado", perdido estava. É a lógica da vida, a lógica da busca, do encontro... perder-se... Sei que divaguei por universos longe demais de nosso chão... falas tu agora, coloque paralelepípedos debaixo dos meus pés, das minhas palavras... traga lucidez para nossa história em transe...

 

Do livro a História em Transe: a luta pelo caminho da compaixão em tempos de desvario e angústias latentes (título provisório)....