Registros para sempre se lembrar de ser grata - Parte I
Uma carta aberta para a criança que fui
Quanto tempo faz… Será que já nos falamos alguma vez? Estou aqui para te fazer um relato; uma revelação, talvez. Eu me orgulho de você. De quem você é, de como se interessa por tudo, de como é curiosa e tem vontade de saber sobre tanta coisa, sobre como quer aprender mais rápido e sobre o quanto é generosa. Eu sorrio quando me lembro das perguntas curiosas que já fez, como aquela sobre o pingo ser irmão do escorrido enquanto observava a água dos seus cabelos escorrer e depois pingar logo após um banho. Gosto de quando algumas memórias felizes do que você ainda está vivendo tomam conta dos meus pensamentos, como a lembrança das idas frustradas ao jardim de infância terem sido trocadas pelas horas de aprendizado em casa, um privilégio. Ou da sensação de andar no meio dos nossos pais, cada um segurando uma mão sua durante o trajeto da procissão pela cidade. Ou de quando você apostava no gato no jogo da roleta na quermesse da igreja e torcia pra ganhar uma maçã. Gosto de lembrar do quanto os seus irmãos te protegiam e entendo que você não goste, mas eles sentem por você um amor tão grande que querem te guardar em uma caixinha, hoje mesmo te disseram isso de formas peculiares que te fizeram rir e chorar ao mesmo tempo. O amor entre vocês continua o mesmo, vocês continuam sem brigar e hoje vocês têm um sem-fim de assuntos pelos quais se interessam mutuamente e conversam por horas, compartilhando opiniões similares distintas e rindo, rindo muito. Você se orgulha do quanto eles são inteligentes, amorosos, generosos e presentes. Vocês ainda são os lé com cré, fique tranquila.
Acho interessante que você escute, cante e aprenda a achar o Hino Nacional bonito e que o seu primeiro disco tenha sido do Stevie Wonder. Do dia em que você o recebeu de presente do nosso pai, eu me lembro com detalhes. Lembro da loja em que ele te levou, lembro do que você viu, lembro do que sentiu e essa é só uma das minhas inúmeras melhores lembranças. Lembro do dia em que você cortou o dedo do pé no rio, do dia em que arrancou o tampão do dedão do pé na saída da escola, do gosto do lanche que levava na lancheira, do quanto amava quem o preparava e do quanto sofreu quando ela foi embora. Das suas festas de aniversário eu lembro de várias e de todas eu só guardo o quanto elas davam trabalho e do quanto tudo era feito com tanto amor e esmero. Você foi uma criança muito amada.
Eu acho bonito você se interessar por música seguindo o exemplo dos nossos pais e irmãos e por influência deles acabar gostando de Beatles, Ray Conniff, Guns n’ Roses e Stevie Ray. Eu sinto um certo desconforto por não ter aprendido de verdade a tocar nenhum instrumento e me lembro que você até tentou o violão, mas os que tinham em casa eram grandes demais e você desistiu. Você vai descobrir que anos mais tarde a nossa versão jovem adulta fará aulas de piano, mas serão anos difíceis, estaremos na faculdade, uma época bem desafiadora em termos financeiros, por isso, você deixará de lado esse sonho pela consciência de que os nossos pais não poderão ter mais um gasto, afinal eles estarão dançando miúdo pra finalizar o compromisso de dar um diploma a você, a última da fila. E você estará em um curso integral, sem poder trabalhar e, por isso, sem ter o seu próprio dinheiro para pagar as aulas. Hoje o sonho do piano ainda existe, esses dias mesmo estava pensando em comprar um e voltar a estudar, mas você acabou de ganhar um ukulele da mamãe e até toca algumas músicas e, além disso tudo, o seu instrumento mais potente e bonito é a sua voz. Você aprendeu a cantar sem que ninguém, de fato, te ensinasse e acredite: você canta lindamente e esse talvez seja o seu maior talento, junto com escrever. Você ainda ama escrever e isso vem daí onde você está: eu sei que você já gosta de ler, aprendeu cedo com a ajuda da mamãe. Recusou-se inclusive a ir pro jardim porque lá nada parecia interessante, você preencheu todo o caderno da pré escola em uma semana e só não ficou entediada com o resto do ano porque a mamãe te levava pra escola com ela no contraturno e te colocava dentro da sala da primeira série. No ano seguinte, lá estava você na primeira série de novo e aproveitou pra ajudar os amigos quando eles tinham dificuldade, era monitora da classe e isso não significava nada pra você, somente que você deveria se sentar ao lado do amigo que tivesse mais dificuldade e ajudá-lo. Que orgulho da sua humildade e generosidade. Eu sei o que você sentia e meus olhos se enchem de lágrimas agora ao lembrar. A sua inquietude e vontade de aprender já eram muito fortes nessa época e continuam até hoje, a sua sensação de haver pouco tempo pra aprender tudo ainda vive com você e você ainda corre contra o tempo. A sua ânsia por aprender a ler tudo aos 4 anos hoje faz todo sentido: você segue lendo e escrevendo loucamente sem parar. Você sente que tem muito de fora pra colocar pra dentro e muito de dentro pra expressar e faz isso lendo e escrevendo. Você vai querer ser escritora, mas a mamãe vai dizer que você pode escrever sendo qualquer outra coisa, daí então, você vai dizer que quer ser professora de primeira série porque admira a mamãe e quer ser como ela. Depois vai querer ser jornalista. Nessa época você vai imaginar que trabalhar viajando deve ser perfeito e olha, você continua achando porque ama viajar, mas acha que jornalista não tem muito a ver com você mais. Viajar sim, viajar você aprendeu a amar com o papai, que vivíamos dizendo que tinha rodinhas nos pés e que mesmo contra todas as possibilidades te levou pra lugares incríveis em viagens das quais você jamais vai se esquecer e que depois você vai poder retribuir o levando pra outros tantos lugares maravilhosos também e vai ser uma realização poder fazer isso, uma alegria ter tanta história pra contar. Nossas histórias são um sem-fim de memórias que guardo com todo amor em mim. Obrigada por construí-las comigo, assim.
PS. Talvez essa um dia continue a ser contada.