Carta de Libertação III

 

Aquele que entra 

 

Alguém entra, Derquagot, e não se sabe quem é. Não ouses adivinhar, porque isso não faz parte do jogo. Apenas ouça e sinta o sobressalto daquele que ousa adivinhar quem realmente nós somos. Sei que é confuso, mas a melhor parte é o que vem depois. Às vezes, a pele mortificada insiste em se manifestar, e assim, os instantes são o arvorar dum ser que não vive. É difícil quando o corpo não corresponde aos desejos mais ínfimos e urgentes. Não que ele não queira, mas apenas é muito jovem para compreender, Derquagot. 

 

Talvez sejamos a falta de algo divinamente sólido neste mundo. A fumaça do carro, o correr do trem, o apito de alguém que pede socorro torna tudo insano. E por que tu não falas, Derquagot? Esqueceste as ideias que agora a pouco te ocorreram? Sentes também a falta daquela esfera quente e enferma lá em cima? E o vento? Tu sentes no tempo a presença do agora? Talvez seja a monotonia dos dias que nos tira o calor da surpresa. E a ausência é a presença mais constante, a nos tornar presos por fios delicadamente suspensos num reino onde renascemos tão inexperientes quanto antes. E a pessoa de hoje não é a de antes: são simultâneas trocas. 

 

Esta brisa de vento sem destino faz com que eu, pelo menos, não perceba as pessoas, não me interesse por elas, ou pelo que elas têm a dizer. São mundos paralelos, como se eu estivesse separada por uma cortina de névoa. Porque a minha mente circunda o lapso de um mundo anterior a este. E tu, Derquagot? Aproxima-te, pois teu nariz está cheio de enxofre. Simplesmente o quê ‘aquele que entra’ deixou. Mas quem garante que o ‘mal’ cheira a enxofre? 

 

Mas ‘aquele que entra’ não vai embora tão cedo. Senta-te, Derquagot, aqui bem perto de mim, pois tu és a única felicidade que eu tenho. A escuridão não basta para fazer do dia de hoje apenas uma efeméride. Não sinto nada, e sei que tu também não. Mas o pior é que nós não nos convencemos da imagem que vemos. Mesmo que ‘aquele que entra’ apareça infinitas vezes no espelho, não compreendemos. Não sabemos o que somos. ‘Aquele’ olha para nós agora. Não te desesperes, Derquagot! É um olhar sério e indagador. Silêncio... Respeita, por favor, a fumaça sulfúrea que nos invade agora.